Crítica | O Poderoso Chefão (1972)

IMPRESSÃO DE GRANDEZA

entre a elegância e o vazio, Clássico de Coppola é econômico onde poderia ser expansivo


Na cena mais famosa e comentada de Os Bons Companheiros (1990), Henry leva sua paquera a um evento, e a impressiona ao evitarem a fila por entrarem pela porta dos fundos. Em um plano ininterrupto, Henry a conduz pela cozinha, copa e corredores até chegar ao salão principal. A cena, ou melhor, o plano é celebrado como um dos melhores da carreira de Scorsese, que não é necessariamente um adepto do plano longo, mas que aqui e ali o usa em seus filmes (e que parece ter esquecido de usar nos últimos 20 anos). Considerado por muitos uma representação de Henry mostrando à futura esposa as entranhas da máfia, o plano nunca me pegou, nem no início da cinefilia, quando nos impressionamos com o menor sinal de virtuosismo que somos capazes de perceber, e menos agora, quando revisto e repensado para este texto.

Pois se essa era a intenção de Scorsese, a de ilustrar com o movimento contínuo a introdução ao mundo da máfia, o resultado final se torna uma tautologia, prontamente esquecida no restante da projeção, perdida no emaranhado de ideias que Scorsese geralmente emprega em seus filmes (escrevi sobre a cacofonia de Taxi Driver, e como naquele filme ela encaixa tão bem), e os quais Thelma Schoonmaker ajuda a deixar ainda mais emaranhado com sua montagem que, nos seus melhores momentos, perfura as ideias de cada cena e bloco. Há, claro, algum quê de ensaio, de encenação, de organização de espaço e de cena para que os dois, seguidos pela câmera, passem pelos corredores e cômodos recheados de pessoas, mas o efeito parece justamente este: o êxito em realizar o plano, e não o plano como modo de pintar o filme, de desenhá-lo.

Começo este texto sobre um filme de Francis Ford Coppola falando sobre outro de seu amigo Martin Scorsese porque os dois encabeçaram o período que geralmente entendemos como a Nova Hollywood: um momento onde diretores norte-americanos romperam com convenções e restrições dos estúdios e realizaram sua própria nova onda, nos moldes da francesa. Minha questão com a Nova Hollywood, ou com o que vi da Nova Hollywood, é que estas mudanças de nada inovam, ou reivindicam, ou sequer elaboram o cinema, apenas o re-organizam sob técnicas e ideias as quais seus cineastas, formados em escolas de cinema e na própria cinefilia, empregam de modo mais dedicado que o que estava sendo feito no momento anterior (embora isso também gere controvérsia). O popular cinemão, a pompa interna da cena e seus elementos, a narrativa grandiosa com choques e revelações, o culto ao ator não como intérprete, mas como médium de um personagem cuja vida nada mais é do que algumas linhas em um roteiro.


O que mais me chama atenção nesta revisita de O Poderoso Chefão é um desbalanço. Um desbalanço entre deixar claro o que se quer dizer pelo cinema (a porta fechando no rosto da esposa), e uma espécie de economia (para não dizer incompletude) que jamais deveria ser elemento tão recorrente em um filme que abrange algo tão expansivo como a substituição de uma geração por outra. Como se o filme na unidade, no específico do plano, conseguisse se alçar ao que se propõe, mas na totalidade acaba esbarrando em arestas nunca preenchidas.

As tautologias de Coppola, pelo menos aqui, são elegantes e polidas, e centradas em torno de um movimento que é de longe o mais interessante de todo o filme: enquanto os espaços se abrem para Vito, eles se fecham para Michael. O filho começa o filme almoçando distante da família, e então vai para a Itália viver no campo, mas termina o filme enclausurado em seu próprio poder. O pai começa o filme tendo de voltar constantemente para dentro da casa, em pleno casamento da filha, e o termina brincando com o neto, em planos mais abertos, mais livres, mais naturais. É o mais próximo que Coppola chega de fazer outro filme dentro do filme, de saltar drasticamente do rigor cênico para uma cena que se aproxima de Cassavetes e de uma suposta falta de controle, que faz nascer algo que o storyboard dificilmente consegue.

A questão é que, entre estas cenas, núcleos e pontas da narrativa, há apenas narrativa. Tudo em O Poderoso Chefão é com o intuito de avançar o curso da história, o que torna o filme um prato cheio para aqueles obcecados por detalhes e como estes revelam mais detalhes. Mas são detalhes em cenas operantes, adornos em engrenagens, enfeites em um jantar que parece ter sido feito apenas com os ingredientes principais.

Há de menos das coisas que realmente importam em um filme, em tese, sobre família. Ou talvez, em um filme sobre como a vida de débito com a máfia interrompe a vida da família. À começar pelas três esposas: a de Vito é vista de maneira periférica, sua voz nunca chega a ser trazida para o filme, e nem a maneira como absorve a morte do filho e do marido - seu plano fantasmagórico, em reflexo no funeral do marido, sendo seu momento de maior destaque. Com Michael, uma cena é o suficiente para esquecer a mulher que deixou na América, se apaixonar pela que encontrou na Itália e decidir se casar; enquanto outra cena, dessa vez uma caminhada (e considero um dos mais belos momentos a caminhada dos dois com o áudio dessincronizado com o que dizem, uma espécie de herança do cinema italiano a partir de um erro de decupagem, talvez), é o suficiente para que a ex volte a ele e os dois se casem.

Mas como vivem estas pessoas? Como é sua relação, o que sentem, o que fazem? Compare como o filme de Coppola aborda seus muitos núcleos e personagens com o que faz Edward Yang, e a impressão é de um vazio que nunca conseguimos ver ou sentir. Pois O Poderoso Chefão (com sua tradução infantilizada para o português) é um filme que posa como algo entre o cinema de arte e o cinema pipoca, mas é mais o segundo vestido do primeiro que qualquer outra coisa. O objetivo final de Coppola não é propor, com uma técnica cinematográfica, com uma ideia, uma visão de cinema, mas contar a história, sempre em direção à história. 

E meu problema com isso é que é um filme de três horas que deveria ter seis, sete. Mas isso jamais funcionaria no sistema, mesmo este sistema “renovador” da “Nova Hollywood”. Um filme só pode ter um certo tamanho. O resultado é que a transformação central do filme, a de Michael, é mostrada em elipses esparsas, pois Coppola controla o filme tão de perto que, fora a cena de Brando com o neto, o impede de respirar, de sentir a si próprio. Um belo mundo, regido com algum teor de elegância e tingido com uma dose bem medida de caos, mas que permanece delimitado em si mesmo. 


O mais próximo que Coppola chega de tatear algo de cosmologia da família Corleone vem na preocupação de Sonny com a irmã, mas mesmo isso é tratado quase como um sopro, que incomoda Vito, mas não parece derrubá-lo. A morte de Sonny, por exemplo, jamais soa como obra do acaso, pois é filmada como todo o resto: atores que sabem onde devem ir, reações energéticas, dramáticas, mas calculadas. É tudo velocidade, é tudo raiva, é tudo ação - algo que curiosamente funciona a favor do filme, também.

É um filme tão devedor ao tempo, que insiste em si mesmo, que incide sobre o tempo, mas que engole seus momentos de luto, que suga toda a gravidade de si mesmo, com o pressuposto de que a máfia é assim. Mas então não há família, há apenas máfia, e portanto o drama se torna raso. Um filme de crime, não uma investigação familiar. Existem as cenas (os assassinatos de Sony e da esposa de Michael), mas elas logo são esmagadas pela elipse.

E volto à cena final de Brando com o neto, e como do nada sua velhice se torna perceptível, em um toque de paralaxe que até então parecia impossível para Coppola, que fecha tanto sua câmera que dificilmente vemos o mundo para além da cena. Podemos presumir, e tantos presumiram, que vemos o que deveríamos ver, mesmo quando tínhamos a visão obstruída (por portas que se fecham, por planos distantes que se tornam explosões, por lutos não filmados, por cabeças de cavalos encobertas por um edredom), mas este primeiro capítulo da saga Corleone, com toda essa força centrífuga, acaba apenas insistindo mais e mais sobre si mesmo.

Uma pena que Peter Griffin provavelmente não assistiu à Luchino Visconti.

7

Próximo
Próximo

Crítica | moisturizer - Wet leg