Crítica | Memórias de Um Assassino

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Enquanto ainda estamos todos processando o monumental “Parasita” de 2019,

que fez história no Oscar e se sagrou como um dos filmes mais importantes do nosso tempo, a filmografia de Bong Joon-ho entra em evidência e não posso deixar de colocar em palavras meus sentimentos sobre esta outra obra prima do cineasta coreano que, além do sucesso de seu realizador, teve outro acontecimento marcante que o trouxe de volta a tona no ano passado.

Baseado no primeiro caso de assassinatos em série da Coreia do Sul, o longa reconta as investigações da polícia de Hwaseong acerca do suposto assassino que estuprou e matou dez mulheres entre 1986 e 1991. Após anos de investigação os casos preteriram até que, em 2019, Lee Choon-jae, preso desde 1994 por ter matado a própria cunhada, fora ligado ao caso por uma amostra de DNA da época e confessou o assassinato das dez mulheres e de outras cinco vitimas.

E não, os acontecimentos acima não figuram como spoiler, mas como plano de fundo para um filme que, mais do que sobre a própria investigação, retrata o peso de atos tão violentos em todos os envolvidos. Moralmente consciente ao não buscar qualquer espécie de sentimentalismo por parte de parentes das vítimas, o impacto causado pelo caso é sentido nos detetives Park Doo-man e Seo Tae-yoon, vividos respectivamente por Song Kang-ho e Kim Sang-kyung, e como suas trajetórias se cruzam para que, ao final de seu envolvimento nas investigação, passem a adotar comportamentos que antes desprezavam. Em uma cena particularmente dolorosa, Park, antes movido pela impulsão e capaz de atos repulsivos para atrair confissões, tem de segurar o antes calmo e paciente Seo para que não cometa algo que definitivamente iria se arrepender.

Mesmo sem jamais descobrirmos muito sobre suas vidas pessoais e por questionarmos as práticas de Park e seu parceiro Cho Yong-koo - que gosta de chutar suspeitos e perde, justamente, sua perna por conta do caso -, percebemos como seus fins são louváveis, por mais que os meios acabem se misturando com os atos do próprio criminoso. Nesse sentido, “Memórias de um Assassino” traz sua própria forma de crítica social, algo marcante no trabalho de Bong Joon-ho que, por mais que admire a polícia e sua dedicação, não se permite negligenciar a parte suja da mesma.

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Esta sujeira que, devido ao design de produção, está grudada nos ambientes internos, principalmente naqueles envolvendo as delegacias - repletas de lixo, seja ele sujo ou não. Um diretor tão competente em seu aspecto técnico como em suas intenções, é notável como os ambientes se fecham e abrem conforme a investigação avança, com Bong Joon-ho espremendo os detetives em cantos, ou no próprio enquadramento que parece estreitar as paredes e diminuir o teto sobre suas cabeças quando eles se encontram sem saída, e se expandir quando parecem próximos de qualquer resolução. Por isso, é claro que ao encontrarem um homem na cena do crime estamos em um local aberto, que rende uma cena de perseguição finalizando em um corredor estreito conforme percebemos que o suspeito é mais rápido que os policiais - que passam boa parte do filme comendo, diga-se. Também eficaz em sugerir que suspeitos são o homem que os detetives procuram, reparem no movimento sutil de câmera que torna nossa primeira vista de um jovem em especial em um momento, ao mesmo tempo, revelador e arrepiante, transformando a inexpressividade do jovem no terror que imaginamos encontrar no assassino.

Ainda assim, e por mais que o roteiro assinado por Bong Joon-ho e por Shim Sung-bo (em seu primeiro filme!) desenvolve o processo investigativo de forma mais do que envolvente, talvez o que mais chama atenção em um legítimo filme de mistério não muito diferente de outros por aí é a habilidade de seu realizador em propor imagens icônicas e repletas de significados. Conferindo considerável importância ao campo onde uma das vitimas é encontrada, o cineasta deixa aberto à interpretação o papel do local para a narrativa, que se inicia e finaliza lá com duas cenas que, ao meu ver, revelam os principais temas do longa.

Na primeira vemos o corpo de uma jovem mulher atirado em baixo de uma vala que se fecha a sua volta e, ali, já é possível perceber que “Memórias de um Assassino” é compromissado em representar o estado das mulheres naquela comunidade. As mesmas falam muito pouco durante o filme sendo que a única integrante feminina do corpo de polícia é subjugada pelos colegas até oferecer algo que nenhum deles fora capaz de captar: o fato de que uma música estaria relacionada aos ataques, dando a eles uma origem baseada em sentimentos e não em lógica, como os homens tendem a acreditar. Já a outra é o memorável plano final, onde Park, antes crente que era capaz de julgar alguém culpado ao olhar em seus olhos, procura na plateia o homem que jamais fora capaz de encontrar e se isso não foi o suficiente para lhe causar calafrios, pense que, quando o filme fora lançado, o responsável pelos crimes ainda era desconhecido.

Mas o tal campo ainda oferece outras formas de interpretá-lo: vejo o vento que move sua plantação como um sinal do tempo que passa sem qualquer resolução e a própria natureza de sua vastidão como um local de esconderijo perfeito para o criminoso - como a cena aterrorizante onde mais uma vítima é feita. Inclusive, o fato de toda a paisagem ser praticamente uniforme conversa com a assombrosa frase dita pela menina, que descreve o homem que havia visto no mesmo lugar onde Park se encontra no final. Pois embora sempre esperemos por tipos aterrorizantes em que basta olharmos nos olhos para que enxerguemos o monstro, a verdade é que crimes como esse são cometidos por pessoas “normais”, que escondem suas tendências abomináveis por debaixo de rostos que estamos acostumados em nosso dia a dia.

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Intenso e provavelmente inesquecível, “Memórias de um Assassino” foi um sinal do talento anormal de Bong Joon-ho anos antes de o mesmo conquistar o mundo. O fato de sua coroação ver no mesmo ano em que uma das grandes inquietações de sua vida finalmente teve resposta, torna 2019 inesquecível de formas distintas para ele, e para seu próprio país de origem.

Mais que qualquer um de seus filmes, mais que o próprio “Parasita”, é como se esta obra seminal estivesse direta, e assustadoramente, ligada com a realidade em que se baseia.

10

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