Crítica | The Last of Us
TUDO O QUE RESTOU
Adaptação de sucesso é carta aberta à humanidade
Existem alguns milagres envolvendo o meu assistir de The Last of Us.
Primeiro, minha resistência com todo e qualquer tipo de série, as quais considero uma perda de tempo precioso que pode ser dedicado a filmes. Segundo, meu histórico de preterir os Videogames como “forma de arte", um debate muito complexo e que não abordarei aqui - ou tão cedo, pois preciso estudar mais. Terceiro, minha fama de “do contra”, preterindo assistir tudo que está na moda por conta de uma preguiça anestesiada.
Mas lá estava eu, todos os domingos (e uma sexta-feira, por conta do Super Bowl), assistindo o mais novo episódio na hora do lançamento, exceto em dias de jogo do Celtics ou qualquer outra coisa que requeria minha atenção imediata. Depois, driblando spoilers e debatendo com meus amigos nerdolas que jogaram o jogo - e tenho orgulho deles por aceitarem bem as mudanças da série.
Enfim, a primeira temporada chegou ao fim e aqui estou, escrevendo sobre a adaptação que superou Detetive Pikachu (2019) como a melhor que vi baseada em jogos eletrônicos. E se o padrão era baixo, isso não diminui em nada o que The Last of Us, a série, consegue fazer em seus nove episódios que, com otimismo, podem ajudar a redefinir não apenas a natureza dessas adaptações, mas também como o público geral entende a conversa entre mídias diferentes.
NÓS
O poder de um título. Ou melhor, de uma palavra, sobre o decorrer de uma obra de arte pode mudar paradigmas na maneira como esta é recebida. Meu quadro favorito, O Grito (1893), poderia ter outra vida caso Munch não optasse pelo óbvio, e poderíamos não estar nos referindo à Jamie Lee Curtis como a Rainha do Grito logo após esta ganhar seu Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante no mesmo dia do último episódio da série criada por Craig Mazin e Neil Druckmann.
Mas chega de divagações - foi assistir uma série que já estou alongando algo que poderia ser resolvido de maneira muito mais simples.
Felizmente não traduzida para um não menos impactante Os Últimos de Nós, The Last of Us preserva assim a simplicidade do inglês, uma língua que não diferencia gênero e, por vezes, também unifica artigos e, portanto, singulares e plurais. Ao longo de seus nove episódios, não apenas o nós tem seu significado explorado, como também o significado geral da frase. Em outra tradução, poderíamos ler O Que Resta de Nós, uma mudança aparentemente leve, mas que rima justamente com a provação final de Joel, reconhecendo que o que lhe resta de humanidade jaz não na esperança de uma cura para o apocalipse que acabou com seu mundo 20 anos atrás, mas na cura que encontrou para o vazio por ele provocado.
Com uma escolha minimalista, o diretor Iraniano Ali Abbasi evoca um momento quase Shyamalanesco: uma violência inevitável e implacável, mas nunca heróica, ou entregue a prazeres gráficos. A câmera lenta nos permite enxergar tudo, mas na verdade não vemos nada exceto o homem. Meus amigos me comentaram como, no jogo, a sequência é uma das mais difíceis, mas do ponto de vista dramático, isso não mais importa. O que Pedro Pascal fez ao longo de toda a jornada é o suficiente para o entendermos como uma espécie de ser invencível, cuja maldição é ser o único a continuar vivo. A cena, em si, é apenas (mais uma) a confirmação de que, em um mundo em ruínas, não há o que manter de pé.
O que me traz ao episódio 3, belamente entitulado Long Long Time.
Mostrando o romance improvável e a vida de Bill e Frank, o diretor Peter Hoar me fez lembrar o Alemão Christian Petzold, o qual considero o melhor melodramático em atividade. Em seu Fênix (2014), ele reconstitui e associa a vida de uma mulher com o que sobrou da Alemanha no pós-guerra, e no seminal Em Trânsito (2018), mostra o purgatório no qual vivem os refugiados e abandonados em uma espécie de crise anacrônica. E é ao sair do centro, e se isolar dos zumbis, que Bill e Frank protagonizam o que poderia muito bem ser um Cenas de Um Casamento (1974) dirigido por Petzold, pois apesar de não vermos, tudo o que eles fazem está diretamente relacionado com o que acontece lá fora.
Mesmo os tons do episódio me remetem a estética do alemão: planos internos com uma meia iluminação calculada, que dá relevo aos rostos sem deixá-los digitalizados demais (um contraponto incrível ao primeiro episódio), e planos externos que, apesar de bem abertos, mostram seus personagens acuados, agachados, discutindo, lutando. Quase como um comentário direto quanto à pandemia que nos manteve em casa por dois anos, é um episódio que valoriza a importância do interior, uma dicotomia mais do que interessante com o fato de que o conservadorismo da abordagem encontra um casal homoafetivo.
Para mim, um fã de filmes de zumbi que já estava cansado da parte prática da coisa, são estes momentos isolados que tornam The Last of Us aquele CD que você tomava todo o cuidado para não deixar marcada suas digitais com medo de estragar. É o pequeno paraíso congelado que vemos no episódio 6, ou o mundo de fantasias em meio ao inferno no episódio 5. A girafa que enganou a todos e tirou a atenção do cenário fantástico feito em CGI ao seu redor, um momento simples mas que mistura uma realidade palpável e uma possibilidade inimaginável para um mundo tão cinzento. São as lembranças de que, por mais enterrado que esteja, ainda há mundo a ser salvo enquanto houver humanidade, enquanto houver algo a ser protegido.
Longe de ser perfeita (até hoje não vi uma série que se equipare aos melhores filmes, mas vi poucas), The Last of Us sofre com tudo envolvendo FEDRA e Vagalumes. Algo já feito antes, e que não apenas me parece ter uma estética bem reutilizada de outras produções, como parece que os próprios criadores se entediaram nestes momentos. Remetendo, talvez, a um Sicário (2015) em como aborda a periferia que se tornaram todas as grandes cidades, falta uma ideia concreta do que fazer com aquele duelo sócio-político, e as mulheres que representam ambos os lados sofrem de uma unilateralidade totalmente desinteressante.
Muitos apontaram para a ausência de zumbis, e considero no mínimo curioso não vermos nenhum “ataque coletivo” no último episódio, o que já se tornou uma convenção do gênero (o que não quer dizer que é algo ruim). Inclusive, Look For The Light me parece acelerar demais o que poderia ser um finale mais digno de tela de Cinema. Mas embora a natureza das criaturas seja sim aterrorizante (e passei algumas horas lendo sobre o fungo com uma pontinha crescente de medo), o que a série consegue é justamente criar uma apreensão genuína com a presença de cada ser humano que não a dupla principal. Algo também comum, sendo que Extermínio (2000) é justamente sobre como os humanos são os verdadeiros vilões, mas que felizmente nunca se torna uma constatação didática e sermônica, pois fica claro que todos sentem o apocalipse de alguma forma.
A proeza está em pintar, com comunidades fragilizadas e espalhadas, um retrato assustadoramente fidedigno dos Estados Unidos e todos os seus crentes, sejam eles religiosos ou militares. Por vezes, um retrato pintado ao inverso, pois os beijos entre Bill e Frank, e Ellie e Riley, poderiam ser recursos óbvios para atrair a raiva (e, portanto, a audiência) dos fracassados e frustrados que se escondem na internet, mas The Last of Us parece sim recusar as tendências mais óbvias de hoje.
Pois por mais que uma interpretação aqui, ou uma alegoria ali, escape e caia no caminho do óbvio, a série parece não se importar e logo volta para o que realmente importa. Duas meninas se divertindo em um shopping, uma filha contando uma piada para o pai, um abraço e uma frase não dita em 20 anos.
E agora, voltando para os milagres que comentei la no início, é incrível que, em 2023, uma série sobre um jogo de zumbis não apenas consiga, mas se preocupe principalmente com os pequenos momentos que tornam a jornada tão especial. E beira o genial que sua última cena seja justamente um plano-contraplano entre Joel e tudo o que resta dele.