Crítica | Angel Face

ESTÁ TUDO NA MISE-EN-SCÈNE

Obra prima de Otto Preminger esconde tudo que não precisa ser mostrado


Otto Preminger é um diretor de mise-en-scène. O que isso quer dizer varia de acordo com o que um entende por mise-en-scène, termo misterioso de qualidade plural ao falarmos de Cinema. Esse um poderia dizer que todo filme é de mise-en-scène, e de fato, todo filme a possui (assim como qualquer vídeo que você tenha do seu gato no celular), mas discordo ao dizer que todo filme a compreende como crucial para sua própria ideia cinematográfica.

A questão com Preminger - e Losey, e Lang, e Mizoguchi, e Borzage, e outros - é que seus filmes são mise-en-scène, são o mundo disponível na profundidade de campo tangível. Seus dramas, suas nuances, suas narrativas, todos estão na mise-en-scène. Diferente de Hitchcock, que podem estar em ícones, em quadros. Diferente de Godard que podem estar nas propriedades da imagem, no movimento de um ator. Diferente de Ozu que podem estar na montagem, na repetição.

E Preminger (do qual assisti apenas cinco filmes), por mais que possa ser também sobre tudo isso - seus filmes reconhecem os ícones, a câmera encontra quadros, a tela reverbera o campo, as elipses demarcam a narrativa, a mesmice provoca a mudança na maré -, tem a rara qualidade de reduzir tudo, e centralizar tudo, na organização da cena.


O PODER DA ELIPSE

Pode se chamar de um Cinema econômico, que faria alguém como Shyamalan em seus momentos de podar excessos parecer excessivo, onde pouco acontece em texto e em cena. Um casal que se conhece de maneira mórbida, uma conversa entre enteada e madrinha, um sorriso ou um olhar revelador.

Essa economia se mostra ainda mais potente quando se reflete sobre o que ficou perdido no espaço virtual escondido pelo salto no tempo: outro diretor mostraria a perseguição da protagonista à namorada do amante, Preminger já mostra as duas conversando. Na encenação, um naturalismo forçado, a maneira como uma xícara vai a boca e um olhar se desvia levemente para evitar contato, revela-se a patologia que para outros estaria presente por modo de expressionismo. O plano contra-plano, o vazio e a premeditação do espaço, as sombras e os passos. Já Preminger esconde tudo.

É uma ideia, ou melhor, uma força tão poderosa no filme que afeta mesmo o tempo dentro de cada cena. Um contraplano logo se torna uma elipse ao se transformar em um movimento que une dois personagens em quadro: distâncias percorridas em segundos, que avançam dias na percepção de cada relação. Claro que principalmente do casal principal, mas também revelando especificidades envolvendo outros personagens. A última interação de Diane (finalmente fui procurar qual o nome da mina) com a madrasta é particularmente aterrorizante: longe de ser o monstro que foi pintada, a mulher repreende a enteada com um carinho de mãe, simbolizado pelo toque no rosto. As duas, na sequência, viram de costas e se afastam no mesmo plano.

Por isso, quando Preminger decide mostrar o acidente, o impacto é tão potente e imediato. Entre ele, e depois dele, elipses que excluem tudo que não é necessário: temos a sugestão em um "sim" acanhado, e toda a passividade reveladora durante o julgamento. Daí, quando Diane quer se confessar, a mesma lógica, a mesma elipse dentro de cena que vai da possibilidade da redenção por meio da confissão até a certeza de que não resta nada para aquela criatura exceto viver com a culpa - e que o filme use o julgamento como modo de ressaltar a fragilidade do rosto de anjo, enquanto este reprime toda patologia da alma em pânico (o título brasileiro é ruim, mas serve de algo).


DEPOIS DE TUDO, O NADA

Filmar é o ato de preencher a tela com algo: entre o preto e o branco, toda tela é preenchida. Se entendemos uma imagem como mostrando o vazio, é por presunção de exclusão: onde deveria haver algo, não há nada.

Esse vazio é mise-en-scène, tanto como o preenchimento também.

Para Preminger, em todos seus filmes que assisti, mas principalmente neste (o mais recente, talvez por isso), o vazio é nada mais que um campo a ser preenchido com as mesmas significações que o cheio. Se Angel Face já é um filme "vazio" em termos pictóricos (muitos planos mostram quartos simples e desnudos com uma ou duas pessoas contracenando), nada simboliza mais tanto a importância da compreensão do espaço, como do poder das elipses, seus efeitos e seus impactos, como a cena onde a protagonista caminha pela casa vazia.

Como um espectro que explora o vazio não deixado por si, mas pelos outros (nesse sentido, quase um Laura reverso), como um anjo a quem foi garantido um paraíso (lembrem do início do filme, da música diegética que recebe Adão no Éden) próprio, agora dobrável a seu gosto. Um anjo que contempla o vazio, se intriga por ele, mas logo percebe que o mesmo não reflete nada se não o próprio vazio que reside dentro de si.

Conversando com vozes baixas, e mostrando apenas o necessário, Preminger faz um filme sobre uma criatura complexa, afetada psicologicamente e cuja patologia é revelada justamente na superfície do que não é dito, nas consequências do que não é mostrado. Um Cinema anti-excessos. Um cinema de mise-en-scène.

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