Crítica | Mortalmente Perigosa

amor como nenhum outro

Entre o romance e a eminência: Clássico Noir é ponto de transição e ponto fora da curva


Vi apenas dois filmes de Joseph H. Lewis, o que geral e definitivamente é muito pouco para dizer que compreendo seu Cinema, mas senti que precisava escrever algo sobre Gun Crazy (Mortalmente Perigosa, em português), enquanto ainda está mais ou menos fresco na memória.

Film Noir é meu gênero (debates acerca de sua natureza deixados de lado) favorito, é a época do ano onde assistir filmes se torna mais fácil e prazeroso, onde mais encontro filmes que acabo colocando na lista virtual de favoritos.

Com mais uma maratona de bagagem (de algumas dezenas de filmes e um bom tempo de estudo), o período começa a se organizar melhor na cabeça: o ápice nos anos 40, uma sensação de evasão nos 50. Década onde diretores pareciam estar se aventurando para outros cantos, para um outro tempo, para novas ideias - muitas delas, cientes e conscientes daquilo que foi feito nos anos 40. O Noir, talvez o gênero mais impuro, perdia sua pureza característica ao se tornar um comentário sobre si mesmo, ou ao deixar outros gêneros o invadirem.

E um filme como esse, que tem em sua imagem mor não os rostos delineados de seus protagonistas, mas uma captura de movimento dos dois enquanto fogem da polícia, me parece um sinal dos tempos. Lançado no início de 1950, Mortalmente Perigosa é tudo que a Nova Hollywood, que Badlands (1973), Bonnie e Clyde (1967), A Última Noite de Um Homem (1967), tudo que esses acham que são, e muito do que a própria Nouvelle Vague de fato foi. Embora Godard e Truffaut considerem A Morte Num Beijo (1955) esse divisor de águas quando falamos em noir, a liberdade estava evidente aqui.


UM REGISTRO De EFEMERIDADE, uma sensação de deslocamento

Li um comentário de Adriana Scarpin que diz: se não for pra amar assim, nem quero. E penei pra pensar em um casal mais romântico e, talvez por consequência, mais trágico que este. Não só por se completarem no sentido que um é apaixonado por armas e a outra é a simbolização de uma, mas porque o filme ao redor dos dois acompanha suas deambulações. Se Malick filma as badlands e então seus protagonistas em meio a elas, se Arthur Penn filma o casal e então a dinâmica alegórica dos lugares que visitam, tudo na câmera de Lewis é influenciado pelo romance no centro. A tela se torna, portanto, não mais um jogo de enquadramentos, de pinturas centrípetas, mas de evasões centrífugas e efêmeras, vide o plano acima.

Algo que me veio à mente enquanto assistia ao filme foi como Drive (2011, daqueles filmes que gostamos no início da cinefilia e vai se despedaçando com o tempo) foi louvado por ter uma perseguição de carro filmada de dentro do veículo. Em Mortalmente Perigosa, saímos do veículo, vamos ao banco, paramos na calçada e voltamos ao veículo em nada mais que dois planos. A tensão está imbuída na condução latitudinal do espaço, no peso simbólico e reativo da imagem.

Com apenas dois filmes na bagagem, Lewis me parece ser um diretor que ansiava pelo cinemascope, por uma tela alongada que expande os caminhos ao passo que diminui os atores. Tanto aqui como em The Big Combo (1955), dispositivos de cena limitam baixo e cima, como se seus protagonistas habitassem um labirinto de onde tem de rastejar para sair, como se a sensação de espaço (um sinal da modernidade) gerasse uma confusão sensorial, um desnorteamento por personagens que não pertencem ao tempo onde são filmados.

E essa lógica de encenação vai além da demarcação visual (que aqui ocorre com os contornos do carro, e em The Big Combo com as sombras e móveis de quartos abarrotados), mas também é assimilada no movimento dos atores: quando se apaixonam, os dois protagonistas vão e voltam verticalmente, como que em uma linha reta de onde não podem pisar fora. Lembremo-nos: ela era prisioneira do dono do circo, ele escolheu entrar no mundo dela.

Daí o título brasileiro mais uma vez faz sentido: Bart era claramente um cara gente boa, que tinha paixão por atirar (não necessariamente em coisas vivas), mas se apaixonou por alguém que era potente demais para ser controlada.

Por isso as pequenas janelas para uma vida comum se tornam tão sentidas. Seja na dinâmica dos dois fazendo contas em um quarto de hotel, ou quando chegam à casa da infância de Bart e veem seus sobrinhos enquadrados por uma janela. Um mundo que ele abandonou e que, agora, não pode mais acessar.

E para consagrar o fato de que não existiu período mais milagroso para o Cinema dos Estados Unidos, está a conversa fantasma com o maior dos diretores, que batiza sozinho uma língua já naquela época desenvolvida mundialmente. Em meio a um pântano, cercados por arredores cobertos pela névoa, Bart e Annie caem juntos. Um final tão romântico, e tão trágico, que resume o noir enquanto deixa um último suspiro modernista de Mizoguchi.

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