Crítica | O Mundo Depois de Nós

CINEMA DE EXCESSOS

Original da Netflix mostra muito, mas se diferencia ao revelar pouco


Acho que até um espectador casual seria capaz de apontar o tanto que o filme de Sam Esmail é excessivo.

A crítica mais comum, pelo que tenho lido, reside no virtuosismo pomposo do diretor, em como faz piruetas com a câmera apenas para "mostrar que está por trás dela". E claro, na posição ideológica do filme, produzido pelos Obamas - e nada como um dia após o outro para se perceber como, nos Estados Unidos, só o que muda é o discurso.

Mas me impressiona, ou já não mais deveria, a incapacidade das pessoas de captar o óbvio. Interpretação de texto já não é uma matéria bem desenvolvida na escola (desconfio que, hoje em dia, nenhuma seja), então esperar que interpretem a forma de um filme realmente entra em campo de inocência.

Pois, para além de qualquer ideologia, ou de qualquer trucagem excessiva, o que deveria importar é como essas se relacionam. Caso contrário, paramos no óbvio e, diferente da câmera extravagante de Esmail, não o atravessamos, contornamos ou, sequer, compreendemos.


ESTILO POR ADIÇÃO

Que há uma obsessão visual por toda a duração do filme é, como já disse, óbvio, mas igualmente óbvio pra mim é como Esmail sabe disso. E, melhor ainda, faz seu filme sobre isso. Um Cinema de excessos que, vejam só, conversa com o discurso autocrítico norte-americano com o qual o cara já tinha flertado em Mr. Robot (nesse, com a desenvoltura de um adolescente, é verdade) e que se associa ao feeling pandêmico de porcarias como Don't Look Up (2021), erros de cálculo interessantes como White Noise (2022) e obras primas como Batem à Porta (2023). Ser estadunidense, para Esmail, é viver no limite do exagero, e nesse sentido nem importa tanto a família classe média (um pouco alta) que aluga um casarão de verão, mas sim a ideia capitalista que rege o país.

Daí talvez até seja mérito do roteiro (que não li), adaptado do livro (que não vou ler), onde é o personagem de Mahershala Ali que tem contato com as pessoas que vivem esse exagero, confrontando a encenação com o preconceito: é o ator negro e muçulmano que interpreta o dono da casa, enquanto Julia Roberts, talvez a maior megastar do início do século 21, é uma mãe comum cuja fotografia (bem iluminada e pensada) não deixa enganar a idade - sempre muito interessante quando estes mitos de Hollywood se permitem envelhecer, ainda mais aqui onde isso vem com uma vulnerabilidade condizente com o discurso do filme.

Mas voltando pros excessos: não faz sentido em um filme onde o capitalismo entra em ebulição (quem não pegou isso e acha que os vilões são a Rússia, a Arábia ou a China é no mínimo analfabeto funcional) que a câmera explore esse exagero? Que o feriado na praia ala Spielberg traga o Tubarão na forma de um petroleiro? Que a arquitetura moderna da casa delimite questões demográficas norte-americanas ala Parasita (2019)? Nada disso é sutil, pois nada é pra ser.

Claro, poderia viver sem metade dos pans que mostram a fiação da casa, sem a gopro colocada na ponta do carro, e sem algumas das tentativas de planos metáfora-tutorial-de-composição-fílmica, mas fiquei genuinamente intrigado com o que Esmail consegue explorar com o exagero. Quantos diretores norte-americanos contemporâneos propõem uma nova forma de usar a tela? Nolan até tenta aliar espaço e tempo (e é louvado por isso mesmo errando mais que acertando), mas os resultados são mais literários do que práticos, e não vou nem começar a falar dos Daniels.

Já Esmail está mais interessado nas dimensões do campo, do Cinemascope como maneira de mostrar uma imagem vertical, inclusive ensaiando alguns planos sequência furtados de Dario Argento (em especial aquele em Tenebre que é um dos exemplos da genialidade do homem) que rejeitam a necessidade de uma decupagem mais tradicional. Tudo bem que Argento usa isso compreendendo e transformando o espaço, enquanto Esmail parece mais interessado no movimento em si, e comparar os dois seja o equivalente a colocar Paolo Rossi frente a frente com Christian Pullisic.


CINEMA POR SUBTRAÇÃO

É no mínimo curioso que em um filme com tanta pirueta a narrativa avance justamente pelo que é omitido. Desde a primeira cena na verdade, onde vemos Julia Roberts olhando algo pela janela, mas principalmente quando a premissa se instala: há sempre a sensação de algo faltando, de que todos escondem alguma revelação que poderia mudar drasticamente o cenário. Esmail assimila o excesso mesmo nisso: a mãe no avião, o bunker dos vizinhos, a cabana na floresta, e principalmente as elipses individuais pelas quais os personagens passam. Em diversos momentos blocos distintos são intercalados, e embora não me pareçam compreender um ao outro, o ritmo da montagem consegue manter a tensão entre a alternância.

E me pega que a melhor cena do filme seja, na verdade, uma conversa à mesa feita em plano-contraplano, desenhada e planejada de modo econômico, onde cada quebra de ângulo é sentida (e essa vem logo após uma dança em plano conjunto que trabalha a encenação de modo que não vejo a tempos no Cinema dos EUA e que escancara a crítica à burguesia melhor que qualquer dos discursos meia-bomba que poderiam ter sido podados também).

Esmail, nesse um filme que vi dele, parece sim querer mostrar demais, referenciar demais e, com isso, acaba pecando pelo excesso. Talvez se cortasse um pouco do papo, das tentativas de redenção em diálogo, e se entregasse puramente as relações de cena de seus protagonistas (a dança, os gritos para afastar os cervos, a conversa no carro com Kevin Beacon sentado na varanda) e a suas trucagens absurdas, talvez estivéssemos diante de um filme realmente interessante, com algo a dizer pelo Cinema se não pelo discurso batido.

As pessoas ainda não compreenderiam, mas isso é, quase sempre, um elogio. E foda-se os vídeos de final explicado, mas já que estamos aqui: a única leitura que me interessa do final é que um filme tão excessivo, que tem prazer em mostrar, termina assimilando todas as suas lacunas como uma maneira digna de encerrar tudo. E foda-se Friends também.

6.5

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