Crítica | O Amor de Astrée e Céladon (2007)

O MUNDO E A PALAVRA

Último filme de Éric Rohmer revela uma coisa ou outra sobre o artista e sua arte


Inicialmente não ia escrever nada sobre esse que é o último filme de Éric Rohmer, mas não podia deixar passar alguns apontamentos bem importantes que, de outro modo, se perderiam no tempo. Talvez até menos sobre o filme e mais o artista, que foi um dos nomes mais influentes da segunda metade do século 20 e cujo legado teórico e técnico reverbera até hoje.

No auge dos seus 80 e poucos anos Rohmer comentou, ao expor o longa em Veneza, que estava pensando em se aposentar. Três anos depois, morreria aos 89, e essa adaptação de um livro do século 17 seria o último filme de um homem que encontrou as mais belas narrativas na matéria do mundo e suas relações. Tendo assistido a mais de 20 de seus filmes, talvez o único cuja premissa “chame a atenção” seja o de A Mulher do Aviador (1981), os outros todos parecem partir de ideias que, por mais arquitetadas que sejam (Rohmer era, afinal, um teórico formalista), então se desenrolam e se descobrem em si mesmas.

Me questiono muito sobre o conceito de masterizar algo, de desenvolver tanto suas habilidades em determinada arte que se atinge uma espécie de erudição. É possível não gostar, subjetivamente, de um filme de Rohmer, Hitchcock, Mizoguchi, Rosellini, assim como é possível não gostar de uma pintura de Monet ou Seurat, ou de uma música de Bob Dylan ou Milton Nascimento. Inegável, porém, que todos esses em algum ponto encontraram uma espécie de zênite, de criar arte não unânime, mas inegavelmente robusta, capaz de provocar sentimentos e sensações.

Aos olhos daqueles mais preocupados com agendas e novidades, talvez um filme como esse não figure entre os mais marcantes da carreira de Rohmer - o auge dele para esses seria, acredito eu, algo entre os anos 80 e 90. Mas ao longo de sua duração, e principalmente com o seu final, O Amor de Astrée e Céladon me remeteu diretamente a essa ideia de auge.

Uma que intensifica também uma extensão do questionamento. Com quantos anos um artista encontra a maturidade? Se na música, a arte mais moldada pela indústria e pelo marketing, o período mais lembrado e comentado é sempre o início e a novidade, marcadas pelos rostos intocados da juventude, no Cinema é inegável que a maioria dos (grandes) diretores melhora com o tempo - entra o fato de que a massa não “enxerga o diretor”, então não importa se Hitchcock está acima do peso, porque quem vemos é Cary Grant, Ingrid Bergman, Kim Novak, etc. Seriam então seus últimos filmes os melhores, ou, entrando no campo platônico das ideias, os mais próximos do ideal de artistas que passaram a vida em busca disso?

E com Rohmer esse debate é refletido por diferentes lentes. Há o artista e o pensador, o diretor e o crítico, o romântico e o intelectual. Ao longo de sua carreira de mais de meio século, Rohmer ajudou a pensar e a criar um Cinema novo, mas também um Cinema velho. Se afiliando, mas logo também se desvencilhando de movimentos, e da própria concepção do Cinema como uma arte que segue um prognóstico histórico, Rohmer foi muito mais um cosmologista que um cronista. Seus filmes, assim como sua famosa frase, eram documentos de suas épocas, mas eram mais do que isso documentos de si próprios, de uma arte que cresce desordenadamente em um mundo sem ordem.


A TRANSFORMAÇÃO PELO REAL

Já nos anos 40 Rohmer teorizava coisas que me parecem essenciais ainda nesse seu último filme, lançado 59 anos depois. Em seu texto Cinema, Arte do Espaço, ele fala sobre a totalidade do espaço fílmico, sobre como um filme nunca é apenas o que é mostrado na tela, mas a relação orgânica entre planos e movimentações de câmera que criam um espaço virtual, imaginário, que compreende toda a diegese. Eu gostaria de estender esse conceito para sua própria concepção de Cinema como obra de vida. Ao longo de sua carreira, Rohmer teve filmes “menores”, experimentos isolados, mas com certeza é lembrado por suas séries (Comédias e Provérbios, Contos Morais, Contos das Estações), com filmes que dialogam entre si e criam no conjunto uma série de códigos e pensamentos que representam ideias centrais.

Assim, um plano de Rohmer nunca é apenas um plano, ao passo que um filme nunca é apenas um filme - e talvez sua grande qualidade como artista popular seja sugerir o contrário, seja filmar de maneira tão “convidativa” que a assimilação pode ser feita intuitivamente, ao passo que ainda guarda descobertas valiosas para os curiosos.

Chegamos em O Amor de Astrée e Céladon, filme sobre a narrativa principal do complexo livro de Honoré d'Urfé (ao ser uma adaptação que exclui quase que em sua totalidade o restante do romance, Rohmer automaticamente alude para a um universo ausente, mas existente), onde dois jovens pastores se apaixonam em uma terra povoada por druidas e outras criaturas, aparentemente, mágicas.

Lançado alguns anos depois de A Vila (2004), considero uma vitória da biologia que possa comentar um filme de Rohmer em dialética com um de Shyamalan, sendo que dificilmente relacionaria os dois exceto por sua influência comum em Hitchcock (o degrau de separação que une toda a história do Cinema). Em ambos os filmes, vemos um cenário teoricamente mágico, mas o que as cenas mostram são apenas sociedades incomuns vivendo seus respectivos cotidianos, em seus rituais e conhecimentos comuns. Ambos envolvem “sair da caverna”, e ambos conversam com o mito de Orfeu e Eurídice (em Shyamalan, a protagonista é cega, em Rohmer, o protagonista não pode ser visto), mas onde realmente parecem dividir a mesma língua é em como seus diretores concebem o espaço.

Se Shyamalan é mais mizoguchiano, reorganizando a hierarquia de planos fechados com paralipses e paralaxes, Rohmer é mais… rohmeriano (lembremos, Shyamalan ainda é jovem, ainda construía sua própria diegese), onde a câmera se inicia em uma ponta, com alguns personagens caminhando e, ao se movimentar panoramicamente, revela outros os esperando em um ponto inicialmente omisso na imagem. Tal efeito ocorre diversas vezes e de diferentes maneiras (Celadon é confinado primeiro em uma torre, segundo em uma cabana, e em ambos Rohmer introduz outros personagens na cena e não no corte), criando uma sensação de integração de um espaço desconhecido - o bosque, de árvores que delimitam a visão, sugere um espaço que transborda esse limite, e que pode ser acessado com uma caminhada suficientemente determinada.

E se Shyamalan é um simbolista, Rohmer a essa altura já estava cada vez mais próximo de uma “economia dos meios de expressão”, e já em 1948 criticava os espectadores por tentarem aprender e compreender, e não a ver os filmes. Logo, o mundo mágico que filma nada mais é, assim como todo Rohmer, um filme de ambulações, mas um cuja rigidez dos movimentos de câmera contrasta com a natureza praticamente intocada. Rohmer nunca foi expressionista, mas diferente de Michel Mourlet, se mostrava fascinado com as maquinações de Murnau e Hitchcock - dos quais ficou apenas com os acasos, as casualidades, os cotidianos. Por mais que seus filmes não sejam plasticamente rebuscados, há sempre uma transformação total do mundo o qual a câmera filma. Andando pelos bosques, seus desconhecidos atores vestem robes e poetizam suas falas, mencionam ervas curandeiras e maldições pela palavra. Rohmer filma o mundo como ele é, e assim o transforma.


Ao refletir e comentar sobre Conto de Outono (1998), me peguei pensando em como a conversa tem um poder formalista com Rohmer, em como ele torna o texto valioso e ao mesmo tempo supérfluo. Essa conversa, claro, não é apenas de palavras, mas de imagens com imagens, do próprio Rohmer com o mundo que vê e tenta manifestar em seus filmes. Mas O Amor de Astrée e Céladon praticamente existe por conta da palavra.

Ao proferir que Celadon jamais poderia estar diante de seus olhos até que dissesse o contrário, Astrée cria uma regra inquebrável que faz o filme perambular pelo mundo (o prático, os movimentos de câmera, a encenação) e, então, maquinar a realidade (o teórico, o disfarce, a encenação). Uma regra que Celadon não precisaria seguir, mas trata como se fosse a própria maldição que levaria Eurídice de volta a Hades.

E se o filme até sua cena final já se estabelecia como uma obra sublime, é no mais insignificante dos acasos - nesse caso, um robe que escorrega repetidamente e revela o seio de Astrée - que se alça ao posto de obra máxima. Rohmer, que por anos filmou homens otários perseguindo mulheres graciosas, termina filmando o casal ideal, um cujo nem a forma (o mundo), nem a palavra (suas relações), nem a encenação (suas maquinações) podem separar.

Como um diretor que defendia a ideia, é poético e belo que, no fim de tudo, ele se revele um idealista.

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