Crítica | Rendez-vouz em Paris

ENTRE A CONFLUÊNCIA E A PERMANÊNCIA

Em filme “menor”, Rohmer experimenta com a natureza da imagem


Um tempo distante quando diretores se empenhavam em projetos onde a ambição era cinematográfica e não meramente estética, onde cada filme dentro de uma suposta série (ou trilogia, ou quadrilogia, no caso de Rohmer nos anos 90) era um novo experimento, uma nova forma de engendrar um Cinema que não se resumia a um único filme, mas a uma convergência entre vários.

Acho que um dos traços mais danosos de hoje é a megalomania que acomete tantos diretores proeminentes, como se cada filme fosse o São Graal, e tivesse que ser maior que o último, reunindo tudo em uma duração fechada. É uma antítese do que faziam Godard, Rohmer, Varda e outros da Nouvelle Vague, diretores apaixonados por filmar e fazer filmes, e não necessariamente por um único filme. Claro, há espaço para projetos passionais, mas quando sua carreira se resume a um desses a cada tantos anos, fica difícil melhorar.

E daí, Rohmer tira uma pausa em seus Contos das Estações e faz dois filmes, este Rendes-vouz em Paris e A Árvore, o Prefeito e a Mediateca (1993), no melhor estilo Woody Allen (fazendo filmes porque não tem mais o que fazer). A questão é que Rohmer, um gênio natural na mesma medida que um estudioso fervoroso, usa esse experimento para fazer um de seus filmes mais ambiciosos, mesmo que disfarçado de um mero exercício.


ENTRE A CONFLUÊNCIA E A PERMANÊNCIA

Se todo filme de Rohmer é sobre algum tipo de ambulação, sobre personagens que se jogam proposital ou acidentalmente ao acaso permitido pela desordem cósmica do mundo, Rendes-vouz é praticamente um comentário auto-consciente sobre isso.

A própria estrutura narrativa denuncia a natureza experimental: três contos distintos que se conectam não pelos acontecimentos (ou mesmo pela cidade), mas pela movimentação: casais (ou quase) perambulando, explorando uma cidade que devia ser glamurosa, mas como todas tem seus cantos escondidos e seus pequenos eventos, entre feiras e exposições, que não serão lembrados a não ser pelos poucos que viveram (e bem provavelmente nem por esses).

Como de costume, suas protagonistas são inquietas, graciosas, e buscam algo a mais da experiência mundana, enquanto os homens em suas vidas buscam, como já dizia Lauryn Hill, apenas uma coisa. Mas curioso que, pelo menos aqui, Rohmer escolha dois atores que não sejam a epítome do homem Rohmeriano (quase sempre muito feito, sempre otário): no primeiro e último conto, os rapazes são ao menos interessantes, mesmo que ainda subjugados ao esplendor que são as raparigas (o protagonista do segundo não escapou, é um Rohmeriano clássico).

Mas o que torna esse um de seus filmes mais interessantes, pra dizer o mínimo, é o contraste entre a liberdade da imagem e o rigor da encenação. Chega a dar impressão que foi filmado com uma DSLR no meio da rua, sujeito às imperfeições na textura e a deslizes não propositais enquanto tenta acompanhar o movimento dos atores, mas isso só na câmera - esse mesmo movimento é orquestrado como inerente à organização do espaço, cada um sabe onde ir e onde parar, em um filme que procura o que quer que se encontre entre esses dois estados opostos da matéria do mundo.

Por isso, o último conto me parece o mais caro para toda a proposição do filme e do próprio Cinema do Rohmer.

Emulando uma perseguição ala-Vertigo (canalizada pela sequência inicial de Vestida Para Matar) em uma exposição de arte, Rohmer define a ideia cinematográfica do filme como uma investigação entre o que se move, o que conflui (as pessoas, as intenções), e o que está parado, eternizado (as pinturas, a rua). Não é um filme “do olhar”, sua modernidade não está em como viola a relação voyeur de seus personagens com o mundo, mas sim em como compreende, no espaço imaginário do filme, a desordem organizada da contemporaneidade, as ações individuais e arbitrárias (o ato de ir a uma exposição por motivo X) que se tornam parte da cadeia de ações e reações que constituem uma confluência.

Que Rohmer consiga arquitetar isso ao passo que parece apenas captar, ao apontar a câmera para o mundo, é das maiores provas que, mesmo em seus dias de folga, o cara era um gênio.

9.6

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