Crítica | handycam - Sophia Chablau e Felipe Vaqueiro

Recentemente me apaixonei por Jonas Mekas, um cineasta, filósofo e escritor lituano que, junto ao seu irmão, foi levado para um campo de concentração nazista na segunda guerra mundial.

Depois de chegar em Nova Iorque como refugiado, uma das primeiras coisas que Mekas fez foi pedir dinheiro emprestado pra comprar sua primeira câmera de mão (uma Bolex) e começou a registrar breves momentos da sua vida. Fundou uma das mais importantes revistas sobre cinema da história (Film Culture Magazine), começou a escrever poesia (hoje seus textos fazem parte da literatura clássica lituana), e, por fim, em um resumo extremamente reduzido de sua vida, criou o título de filme mais lindo da história pra sua película mais famosa: “As I Was Moving Ahead, Occasionally I Saw Brief Glimpses of Beauty / À medida que avançava, ocasionalmente via breves vislumbres de beleza”.

Seus filmes, em maioria colagens de instantes pessoais, refletem sobre as dores de existir e sobre a tentativa de capturar fragmentos de beleza em meio ao caos. Mekas vive a desordem em constante estado de aflição, mas ainda assim consegue filmar o afeto e suas nuances.


Sophia Chablau (Uma Enorme Perda de Tempo e Besouro Mulher) e Felipe Vaqueiro (Tangolos Mangos) fazem algo muito parecido em Handycam. Não é o mesmo tipo de registro, mas é o mesmo impulso. O que se vê contrasta com o que se sente, e o que se grava é uma mistura das duas coisas de forma intensa, sempre preparando o terreno e antecipando com muito carinho o próximo quadro.

Por exemplo, se existe o sentimento de revolta quando se fala de imperialismo estadunidense, junto a rigidez da percussão e do violão da estrutura de “Campo Minado”, que simula em sua sonoridade extremamente brasileira uma espécie de autoritarismo ditatorial, o amor como forma de escapismo em “Cinema Total”, com seu mandolin e performance delicadíssima de Sophia, estabiliza nossos batimentos e quase nos faz esquecer o problema que a pouco nos sufocava e causava pânico.

As vitrines da cidade
iluminam as pessoas e as ladeiras
nesse fim de tarde

Eu vou passar na sua rua
pra gente esquecer das notícias da TV
e viver o nosso cinema

E na ausência de paz
fico em paz, fico em paz
— Cinema Total

Em o “Cinema brasileiro”, o perfeito exemplo de capturar pequenos momentos de amor em meio ao completo caos se concretiza. A guitarra distorcida e pulsante acompanha o versos onde Sophia o cinema brasileiro pegando fogo e envelhecendo, até o momento que ela verbaliza: beijaria o set inteiro, só pra disfarçar (…). O pequeno lampejo de autoconsciência mata a distorção e traz um lick melódico completamente apaixonado que dura pouco mais de 10 segundos. Frágil, efêmero, inesquecível. Momento capturado, ouvinte também.


Existem lapsos de pura melancolia, como “Tempestade de Verão”, e de noites embriagadas cantando You Don’t Know Me de Caetano de forma mais pujante e elétrica, aqui cheia de sintetizadores, em “Lungs Full of Air”. De pura força emocional e paralisante, na política e experimental “Canção de Retorno”, ainda mais quando sabe-se que música é sobre sua amiga Síria que ficou 10 anos sem poder voltar pro seu respectivo país em razão da ditatura imposta por Bashar al- Assad.

Por fim, a composição que mais se assemelha ao cinema de Jonas Mekas, ao anti-esquecimento, às coisas que importam, mas que enquanto ocorrem não sabemos que importam, é a linda e intimista “Já não me sinto tão só (para Julia Zen)”.

É um testemunho do instante, da simplicidade, onde a gravação da voz de Júlia dá início a música, os assovios viram instrumento e guitarras tentam manter uma distância suficientemente contemplativa pra acompanhar as memórias de Felipe Vaqueiro - antes, momentos ordinários, que agora se tornam histórias eternas.

8.0

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