Crítica | Paris, Texas (1984)
À MANEIRA AMERICANA
Em filme que segue reverberando, Wim Wenders tensiona toda uma ideia de cinema
O primeiro plano de Paris, Texas se estende ao longo de um deserto, passando por montes e rochedos até encontrar um homem andando, sozinho. Não é preciso mais do que esse encontro (da câmera com o ator), do que esse contraste (do ator com o deserto), para que uma dúvida devidamente cinematográfica se instale: neste cenário de tantos faroestes, impregnados no imaginário do cinema americano, o que faz este homem perdido?
É um início que pode remeter a outros tantos filmes. Dois deles me vem à mente: em Kiss Me Deadly (1955), começamos com uma mulher perdida no meio da estrada, e logo descobrimos uma trama que envolve teorias da conspiração e medos comuns da sociedade americana em tempos de guerra fria; outro, dez anos mais velho, é Detour (1945), filme onde um homem pega uma carona e acaba se envolvendo em um crime que não cometeu. Em ambos, vemos deambulações que se confundem com perdições. Em Paris, Texas, a imagem de um homem caminhando é incipiente para a intriga do filme, e remanescente da história de Hollywood.
Voltando ao plano, este conta com o movimento irregular do helicóptero que carrega a câmera. O primeiro corte nos leva ao pouso de uma águia, graciosa e engenhada de maneira irretocável pela natureza. É impossível, nesta primeira justaposição, saber qual a exata proximidade entre homem e animal. A linguagem comum pode sugerir tanto ambientação como proximidade: estaria o homem morrendo, e a águia esperando como um urubu?
O plano seguinte nos mostra o homem do que parece ser o ponto de vista do animal (seria então o primeiro plano uma emulação do vôo da criatura?), para então nos revelar, em plano americano, um homem maltrapilho, com um boné vermelho - que hoje, em 2025, adiciona uma camada de anacronismo inevitável à cena. O homem se vira, e com mais um corte vemos a águia: os dois se olham, e o homem segue seu caminho, diminuindo cada vez mais no horizonte, enquanto cordas solitárias reverberam pelo espaço.
O que Wenders, cineasta alemão que queria “fazer um filme sobre a América”, estabelece nesta primeira cena é um jogo de dicotomia e justaposição, que mais tarde se desenvolveria (e revelaria, talvez) na imagem mais marcante de Paris, Texas. Vemos, por meio dos planos de homem e águia, e por meio dos planos-ponto de vista de homem e águia, um embate entre a tecnologia e a natureza (e como a primeira jamais poderá personificar a graciosidade da segunda), entre a civilização e o selvagem (ou o abandono da civilização em um processo involutivo), entre a América como ideal, e a América que de fato existe.
Eu vejo, na junção dos dois primeiros planos, e em toda esta sequência de abertura, a decadência completa do sonho americano, que seguiremos a explorar à seguir.
Pobre é o homem que, na cidade dos sonhos, não dorme
Se qualquer coisa, esta primeira sequência estabelece o que o título já deixava claro: Paris, Texas é tanto um filme sobre lugares como sobre um processo de desorientação e deslocamento de uma iconografia que não pode mais sentar confortavelmente no imaginário do cinema. Travis, nesse sentido, é não apenas uma rejeição da civilização moderna, um homem que caminha em direção contrária ao avanço modernista (o contraste entre o deserto e a selva de pedra), mas especificamente do sonho americano (o contraste entre o deserto e as luzes de Los Angeles).
O qual seu irmão parece viver, talvez como que copiando uma vida que era para ser sua: fazedor profissional de outdoors, ele contribui para a doutrinação imagética de Los Angeles, recebendo em troca uma casa-mirante onde pode ver os horizontes da cidade onde os anjos dançam no céu. Indo além: sua bela (e loura) esposa é francesa, e seu filho é, na verdade, o filho de Travis cuja mãe (bela e loura) fugiu, anos atrás. Walt não apenas participa do sonho americano com sua profissão, mas traz para casa os ideais de doutrinação e colonização cultural.
Portanto, faz sentido que, quando retorna à esta redoma (uma cópia perfeita da vida perfeita), Travis tenha de rebobinar seu processo involutivo. Primeiro, tem de reaprender a se comunicar, e então a se vestir, e então a andar.
O processo causa frustração em Walt e Anne, que parecem lidar com uma segunda criança na casa. A forma que conseguem enfim se comunicar com Travis, ou melhor, criar pontes entre ele e o filho, é semelhante àquela que o próprio Travis usa para “explicar” sua condição. Os pais mostram aos “filhos” filmagens antigas (em super 8) de todos juntos, das quais Hunter não possui memória. Já Travis mostra a todos uma foto de um pequeno lote de terra que comprou na cidade de Paris, no Texas. Assim como as pinturas rupestres, a conversa destas criaturas, que vivem no império das imagens, começa por elas.
Ultimo raio solar da Antiga Hollywood ou filme inaugural do maneirismo cinematográfico? Ocaso do classicismo ou primeiro filme moderno norte-americano? Provavelmente as duas coisas ao mesmo tempo: tanto a quintessência da forma clássica e a perfeição suprema do estilo romanesco hollywoodiano como a decadência do seu imaginário e o prenúncio de um esgotamento, de uma exaustão dos esquemas psicológicos e narrativos que constituem o arcabouço desse sistema de representação. Em outras apalavras, tanto o apogeu da Hollywood clássica como o início do seu declínio. (Luis Carlos de Oliveira Jr., 2015, p3)
O maneirismo foi um movimento artístico que surgiu no início do século 16, na Itália, servindo como uma ponte entre os ideais harmônicos renascentistas e o barroco, que viria à seguir. Em cima da discussão acerca do recorte na pintura e outras artes da época, a conversa no cinema parece ainda mais intrincada.
Geralmente, associa-se ao maneirismo alguns filmes feitos na Itália e nos Estados Unidos entre as décadas de 70 e 80. O aporte, grosso modo, diz que, conscientes das resoluções clássicas do cinema, e tendo este se esgotado delas, alguns cineastas partiram em busca de recontar as mesmas histórias de maneira a romper com formas e convenções. Alfred Hitchcock é muito possivelmente o nome central desta discussão, com Vertigo (1958, filme do qual o parágrafo no início desta seção se refere) sendo seu maior proponente para uma “teoria maneirista do cinema”, tanto, que o filme foi refeito exaustivamente nas décadas seguintes, com notável afinco por nomes como Dario Argento e Brian DePalma.
Em Paris, Texas, filme de imagens, estas são, também, idealizações. De um tempo que não volta, de um lugar perdido, de uma textura inatingível. Dos desertos, às fotos, à textura granulada do vídeo caseiro, fica evidente que Travis não habita mais a mesma dimensão que Jane. Na verdade, Travis não habita mais o mesmo mundo que nenhum de seus familiares: suas primeiras interações com o irmão são realizadas por meio do espelho retrovisor, sua caminhada com o filho é do outro lado da rua, sua estranha relação com a cunhada suscita memórias de uma cópia (ambas belas e louras, como Kim Novak, embora nenhuma a seja).
Dialética que retorna no peep show, onde Travis e Jane conversam e seus rostos se fundem de maneira entre o extravagante (o rosto de um homem na figura de uma mulher, ala Psicose) e o delicado (todo o cuidado para desenhar a cena com o uso da luz). A maior defesa do maneirismo do filme reside nesse plano: Wenders não apenas desconstrói o esquema clássico do contraplano hollywoodiano, mas o infunde com o two shot, avançando ideias espaciais e reflexivas (muitos filmes fizeram planos semelhantes de pessoas em frente a espelhos e/ou quadros) em direção a distorção. E se a distorção é, assim como as melhores pinturas maneiristas, algo de estranho ao olhar, é nessa estranheza que reside a beleza deste filme esquisito.
E como o maneirismo já apontava 500 anos antes de Paris, Texas, não há solução após o esgotamento da imagem se não novas formas de pensá-la.
Por isso, a melhor cena do filme, e também a que mais merece atenção, é a última. Assistimos, em paralelo, ao reencontro de Jane e Hunter, e ao reencontro de Travis com o exílio. O primeiro, filmado em um único plano, com uma câmera que se realoca no quarto do hotel de maneira quase óbvia: perfilada frente ao prédio vizinho, iluminado de verde, Jane surge quase como uma versão fragmentada de Madeleine, destituída de toda sua elegância (ou seria ela Judy, visto a cor idêntica de sua roupa ao vestido usado por Kim Novak?). Hunter aparece primeiramente no canto do quadro, e é dele o ato de romper com a barreira da imagem e abraçar a mãe (o que ele não tem, que os outros tem, é o esgotamento: sua relação com a imagem, apesar de idealizada, é pura). E se não poderemos jamais recriar a natureza, como o primeiro plano do filme deixa claro, há em cada um de nós a possibilidade de copiá-la: Jane olha o rosto do filho, reconhecendo os traços de quando era pequeno, e os próprios traços que vão além das madeixas louras.
Já à Travis, só resta se isolar novamente, dirigindo em direção as cores do céu que não podem ser vistas da civilização e suas luzes inebriantes. Luzes que, no penúltimo plano do filme, criam uma névoa ao seu redor.
(Houston é, como o nome do time de basquete entrega, um dos centros espaciais dos Estados Unidos).
O que esta cena tem de belo, sua influência no cinema tem de turva. Se observou, ao longo do século 21, algumas vertentes academicistas, cinemas que tentam se passar por outros cinemas ao adotar técnicas e ideias, mas que não conseguem mais do que ser apenas emulações. Duas delas parecem, de algum modo, ligadas à esta cena final: a primeira remete à cena do reencontro de Hunter e Jane, onde a câmera observa ao mesmo tempo que poetiza (os irmãos Dardenne, Apichatpong, Hou Hsiao-hsien para citar alguns exemplos bem sucedidos), diluindo o plano no que Stéphane Bouquet chamaria de fluxo; a segunda já se aproxima da jornada de Travis, e teve resultados mais ambíguos. Filmes como Moonlight (2016) e Nomadland (2020) ganharam o Oscar ao, em suma, filmar o indivíduo em relação ao capitalismo por meio de imagens da natureza. Filmes que buscam o belo como contraponto ao capital, mas que muitas vezes se reduzem à suas respectivas tentativas (acredito ser mais o caso do segundo que do primeiro, embora os diretores de ambos tenham migrado para a Disney, anos depois).
A questão é que este filme de Wenders, ao mesmo tempo culpado e inocente de todas essas questões, se permite registrar sensações não apenas de seus dispositivos, mas do magnetismo entre seus personagens, em como estes perambulam pelo filme e suas elaborações plásticas, seus diferentes tempos, texturas e tensões. Um filme que eclode os diferentes estados entre todas estas almas, perdidas por um Estados Unidos cada vez mais uma cópia de si mesmo.
A maior proeza de Wim Wenders, ao meu ver, é fazer um filme inegavelmente, inseparavelmente e indiscutivelmente refém da própria cultura (e da própria cultura cinematográfica), o fazendo por meio de dualidades observadas por um cineasta estrangeiro em uma jornada menos etnográfica que interpretativa. Dualidades que convergem até a emulsão, e que então eclodem em diferentes direções. O homem rústico com a barba por fazer fica preso ao passado (nas fotos e nos filmes), a jovem mulher maquiada e produzida precisa olhar para o futuro (no rosto do filho). Um primeiro plano visto do céu de um terreno batido e muito já filmado pelo faroeste, um último plano visto do chão da cidade de onde sobem os foguetes. Na memória, e entre os dois, o dançar das luzes.