Crítica | O Sacrifício

água, fogo e tempo

Último filme de Andrei Tarkovsky tem assimilação sublime dos elementos de sua carreira


Quarto filme que vejo e primeiro que escrevo de Andrei Tarkovsky, O Sacrifício (1986) inicialmente me lembrou mais os filmes que vieram depois do que os que vieram antes.

Embora comumente comparado à Ingmar Bergman (e a equipe do filme tem muitos parceiros usuais de Bergman), a primeira lembrança que tive foi de Melancolia (2011), de Lars Von Trier - diretor que, volta e meia, acho auto-indulgente a um nível quase indesculpável, mas que neste filme em específico me parece ser sincero como nunca antes ou depois em sua carreira. Ambos são sobre o fim do mundo a partir de uma família burguesa em uma casa isolada de campo, mas enquanto o de Von Trier é quase uma ode à psique e à natureza, o de Tarkovsky é quase um atestado bíblico.

Enquanto há uma discussão em andamento na cinefilia brasileira sobre "unidades", acho que é comum dizer que a unidade de Tarkovsky não é o plano ou a cena, mas o tempo. E como este deteriora, decai, apodrece, destrói. Em O Sacrifício, a câmera se aproxima e se afasta de maneira impiedosa, quase na luz de um Mizoguchi moderno em que a cena continua acontecendo mesmo que o plano mude. Mas diferente de Mizoguchi, ele não resume a cena ao plano, e diferente de Bergman, não busca nenhuma resolução direta ancorada pelos diálogos e toques. Sua questão é inteiramente como o tempo passa dentro de cada corte, e como as coisas são sentidas: em uma cena, uma mulher tem um ataque de nervos e deve ser acalmada. Outro diretor extrairia o elemento da performance, e cortaria para a situação resolvida fora de tela. Tarkovsky exausta e exaure, corroi a alma enquanto percorre o sofrimento da personagem.

Em outros momentos, ele filma rostos em primeiro plano de maneira expressiva, e em outros cria composições pictóricas com espelhos que aludem para a totalidade de sua mise-en-scène. Nada em seus filmes é excluído quando sai de cena, porque o tempo vai trazer tudo de volta. Penso então um paralelo com a água, e como ela se movimenta em padrões similares mas nunca iguais, e o fogo, e como é a única maneira de destruir a essência de algo. O Sacrifício então teria uma espécie de sacada, e antes de ir para o próximo tópico deste texto, me atenho a cena final: quando a casa é destruída pelas chamas, exuberantes e o mais próximo do sobrenatural que a natureza pode chegar, a câmera explora o espaço lateralmente (de novo, similar a Mizoguchi) e, ao não priorizar nada exceto o tempo, é que aplica o devido peso da cena: as reações, as corridas desesperadas, os amparos inúteis. Mas é o plano final o verdadeiro ponto, pois é ao vermos os galhos de uma árvore frente à água em movimento que a enxuta, mas ambiciosa carreira de Tarkovsky termina. Não é no chamariz do fogo, mas na calmaria da água.

A partir disso, cineastas como Shyamalan e Christian Petzold podem ter muito bem nascido. Não é a destruição, mas a modulação que vem depois. O levitar dos corpos foi claramente aludido por Schrader, e praticamente todo o pós-horror parece buscar algum tipo de prazer e transcendência estética descendente de seus filmes, de Ari Aster à Robert Eggers.

O que me leva a um aspecto curioso. Embora a magnificência de um filme como este me impressione em uma escala reflexiva, a experiência de assistir o filme, ainda mais em casa, é desafiadora. E me peguei em diversos momentos questionando se não achava tudo "poético demais", "elevado” demais, auto-indulgente demais. Não tenho resposta para isso, não no momento, mas é algo a se pensar nas próximas vezes que assistir a um diretor que certamente não faz filmes para pessoas nos seus 20 anos. Ou melhor, talvez estas possam sim ter momentos de revelação assistindo seus filmes, mas… feitos com e sobre o tempo, me parecem precisar de tempo. Que bom que ainda tenho.

8

Anterior
Anterior

Crítica | Sophia chablau e uma enorme perda de tempo - autointitulado

Próximo
Próximo

Crítica | O Convite Ao Prazer (1980)