Crítica | Adrianne Lenker - Bright Future

O Poder da efemeridade como meio de conforto


Um temporal que chegou sem avisar enquanto eu, a pé, tentava achar o caminho de volta pra casa. Completamente despreparado, sem guarda-chuva, minhas roupas foram ficando molhadas e pesadas. Porém, o calor que precedia essa precipitação era o que de fato incomodava. A chuva torrencial, na verdade, foi uma bênção. De repente, um arco-íris. A temperatura agora era agradável. As folhas das árvores, recém-lustradas, brilhavam aos olhos, e o ar, prazerosamente, estava mais fácil de ser puxado para os pulmões.

Assim que me senti ao ouvir Sadness As A Gift, o single inaugural do álbum lançado em 2024, pela primeira vez. O poder da escrita de Adrianne Lenker repercute de tal maneira em mim: ela, mais do que ninguém que se encontra vivo, possui a capacidade de criar experiências sensoriais através de suas composições cruas e brutalmente honestas, sejam elas infestadas de metáforas ou literais como um dicionário.

Desde que me peguei imaginando o calor de lábios beijando minhas pálpebras ouvindo Anything, de seu álbum Songs (2020), senti instantaneamente que algo em mim havia mudado. Foi como se ali, naquele momento, eu tivesse descoberto uma nova voz para me guiar até o final dos meus tempos nessa terra.

A partir daquele instante, comecei a disseminar sobre a melhor (e proporcionalmente desconhecida aqui no Brasil) escritora da nossa geração para todas as pessoas que podia, sempre que tinha a oportunidade. Um sentimento que já era grande com o quarteto Big Thief tomou proporções muito maiores.

Então eu comecei a ansiar por esse álbum, aqui comentado. Ansiei por Bright Future como não ansiava por nenhuma obra musical desde Blonde, de Frank Ocean. E, comicamente, assim que o tive em mãos, não consegui passar da primeira Faixa (Real House). Lágrimas caíam sobre os versos da prosa mais linda e triste que eu já havia lido/escutado. Os acordes despretensiosos tocados no piano me levavam ao infinito, mas sua voz me segurava em um passado preenchido por um senso de impermanência muito pesado para ser sustentado sozinha.

Bright Future foi gravado diretamente em fita em um estúdio onde não havia uma única tela de computador. Reouvir e retocar não eram uma opção. A beleza da coisa se encontra na vulnerabilidade do agora, e isso fica nítido quando, entre o sétimo e oitavo verso da música de abertura, sua respiração falha, e ela precisa buscar forças numa respiração profunda antes de relatar a primeira vez que viu sua mãe chorar.

Dois dias depois retornei ao álbum esperando pelo pior (neste caso pior significa a completa destruição do meu coração como se fosse um vaso de vidro), e fui pego com um contagiante otimismo. Chega a ser engraçado, mas por mais que estruturalmente e narrativamente todo álbum se conecte, a experiência humana de ouvir Adrianne Lenker deve ser isolada faixa por faixa.

Ela é capaz de compor histórias tão intensas que, naqueles 3/4 minutos de contemplação musical, nossa existência é apagada e nada mais importa. É uma ocasião de absoluta presença. Em Fool e Free Treasure, as coisas mais mundanas do mundo, como um arroz e feijão feito por sua mãe (Momma's advice (Advice-vice), Cookin' up beans and rice) ou um chamado para dançar (Do you wanna dance?Sometimes I think I try too hard; I trip on my shoes and I trip on my shirt, Get caught on the dirt in the yard), ganham uma magnitude e uma leveza quase embriagada.

This whole world is dying
Don’t it seem like a good time for swimming
Before all the water disappears?

Now our love is dying
Don’t it seem like a good time for kissing?
One more kiss, one more kiss to last the years
— Adrianne Lenker, Donut Seam

São justamente esses momentos que amarram o nó. A dor do passado que se torna algo belo no presente e que cria a esperança em um futuro brilhante, mesmo que o mundo que sustente tudo isso esteja acabando, como ela referencia em Donut Seam (talvez minha música favorita deste ano). Antes que tudo desapareça, ela propõe: por que não nadar nas águas que nos matarão? Por que se impedir de criar expectativas enquanto aguarda uma carta de amor? Por que não guardar na memória um último beijo que mais machuca do que afaga?

Por que não encarar a tristeza como sinônimo de vida (e de estar vivo)?

É o que me questiona a voz que me guia desde 2020.


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