Crítica | Triângulo da Tristeza
Uma comédia de classes que opera com várias dimensões da realidade.
Vencedor da Palma de Ouro é uma sátira cheia de grandes momentos capaz de provocar intensas sensações.
“Como funciona o mundo” diz a capa de um livro escrito por Noam Chomsky lido pelo Capitão do barco (Woody Harrelson) no clímax de “Triângulo da Tristeza”. É ancorado na ideia de criar um microcosmos do mundo baseada na visão de Chomsky que o diretor sueco Ruben Östlund constrói seu roteiro de humor ácido que em quase 150 minutos dá várias opiniões sobre a sociedade de classes e o mundo capitalista. Para fazer isso, separa sua história em três atos bastante distintos, cada um contribuindo a sua maneira para a tese discutida e criando momentos memoráveis com piadas rápidas e construção de imagens potentes criando variações de tom e ritmo que deslocam a todo tempo a maneira como nos sentimos em relação a trama.
Um ponto importante para minhas impressões sobre esse filme se formarem é que por ocasião da ação de marketing chamada “Semana do Cinema”, em que todas sessões na minha cidade tiveram ingressos a 10 reais, pude assistir numa sala lotada, algo cada vez menos comum principalmente em um longa que vem com o carimbo da Palma de Ouro. Isso, claro, muda toda percepção que tive, ver o público reagindo intensamente às diversas experiências propostas por Östlund me confirmam o tanto que cada um delas funcionou, aliás, uma reação genuína do público que não lembro de ter visto em muitos anos. E “Triângulo da Tristeza” nos dá muito para reagir, momentos de surpresa, de tensão e uma das sequências mais bem dirigidas do ano no segundo ato, que por mais escatológica e barulhenta que seja conduz a gente para dentro do navio em que os passageiros estão vivendo uma espécie de purgatório e nos faz sentir alegria pela desgraça deles em uns momentos e empatia sobre as dificuldades que estão passando, às vezes simultaneamente. Os gritos de surpresa, exclamações e risadas se misturam ao desenho de som (muito bom diga-se de passagem) construído na película.
Como comentei, são três capítulos na história: o primeiro é sobre o casal Carl (Harris Dickinson) e Yaya (Charlbi Dean), aqui o diretor apresenta as discussões da trama apenas utilizando os dois super modelos e sua relação um com outro e com o dinheiro e como isso os permeia. No segundo capítulo vemos os dois e dezenas de outros passageiros e trabalhadores em um iate de luxo, aqui todos temas são aprofundados, dobrados, redobrados e desdobrados em muitas pequenas situações, quase como um show de esquetes. O terceiro capítulo começa quando esse iate se acidenta e um pequeno grupo dos tripulantes (incluindo o casal do primeiro ato) acaba perdido em uma ilha e é aqui que as temáticas mais importantes passam a interferir no destino deles, pois os valores de cada um entram em choque quando é sua sobrevivência que está em questão.
A estrutura narrativa permite que cada um desses espaços seja uma nova configuração de relação entre os personagens, que dentro da trama funcionam como argumentos para diferentes discussões e as novas situações externas que agem sobre eles os fazem achar novas maneiras de exercer esses argumentos. Carl é trabalhado sempre na sua dificuldade de se colocar no mundo quanto o homem idelizado por si mesmo a partir da sua beleza, seus 25 anos o fazem ser tratado como velho para seguir trabalhando no mundo da moda como sua namorada com quem tem conflitos para tentar impor sua masculinidade na relação, “você tem que lutar” ele ouve de um motorista que escuta uma briga entre os dois. O outro grande exemplo disso é a personagem Abigail (Dolly de Leon em uma das melhores interpretações do ano) que é chefe das camareiras do iate, mas a única do grupo da ilha que sabe pescar e limpar peixe, preparar a fogueira para os outros sobreviventes do navio ficarem vivos e por isso seu papel rapidamente muda de chefe das camareiras para comandante da equipe.
A tese sobre como o mundo funciona do roteiro é baseada na visão determinista, o ambiente contra os sujeitos, esses sujeitos porém representam aspectos do ambiente que os criou anteriormente, o capitalista russo que foi educado no período soviético e agora é um barão dos fertizantes que cita Reagan e Thatcher rapidamente lembra como citar Karl Marx quando passa a estar na base da pirâmide do cosmos do filme, ao ter a promessa de dinheiro futuro recusada por Abigail. E o ambiente de “Triângulo da Tristeza” jamais é tão propício como na grande cena em que o jantar no navio dá errado, é a segunda metade inteira do segundo capítulo e serve como clímax temático, pois aqui vemos todos personagens nas suas essências mais puras: enquanto uns boiam em fezes e vômito outros apenas ignoram e pensam que tudo vai ficar bem e ainda alguns seguem festejando, a sequência magnífica celebra então a síntese proposta por Ötmund que é mostar “como o mundo funciona”.