Crítica | The Beths - Straight Line Was A Lie

Eu acordo todo dia as 6:45 da manhã, passeio com meu cachorro tempo o suficiente pro meu apetite despertar, e me dirijo até a padaria na rua de trás pra pedir os mesmos 6 pães franceses (ou cacetinhos pros meus conterrâneos) que comprei no dia anterior - moro com outras duas pessoas, não são todos pra mim.

Dou bom dia pro mesmo atendente e pago sempre no débito, pois a vergonha de tentar passar 4 reais em pão no crédito mês passado e ter a compra não autorizada me assombra até hoje. No caminho de volta eu anseio pelo meu pão com ovo como talvez não deseje qualquer outra coisa no resto do meu dia.

Então todo dia, sempre que posso, sigo esse mesmo ritual, e é a única coisa 100% segura e previsível da minha rotina. É a parte sem graça dela, apesar de ser uma das mais gratificantes. Entre esse período determinado pela compra de pães pro meu café de manhã, que também podemos chamar de “dia”, tudo se torna um novo caminho sem placas a ser desbravado.


The Beths, a banda australiana de Indie Rock, especialista em fazer suas canções parecerem jingles de tão melódicas, é minha rotina matinal. Eu sempre sei o que esperar deles desde seu primeiro lançamento em 2018, Future Me Hates Me. Logicamente, as texturas mudam e, por óbvio, nunca é exatamente a mesma coisa. Ninguém entra no mesmo rio duas vezes, certo? Porém, é essa reconhecibilidade na sonoridade da banda que traz um conforto nostálgico e uma predisposição a gostar do que se escuta. E de querer continuar escutando.

E são poucas bandas de Indie Pop/Rock buscando patentear um estilo próprio debruçados sobre o conforto, sobre a facilidade, sobre o acorde mais esperado e sobre o refrão doce e palatável, como se ainda fosse a parte mais importante de uma música.

Metal, o primeiro single desse novo ciclo de Elizabeth Stokes e sua banda, muito mais existencialista e menos inocente que suas composições prévias, ainda é a perfeita demonstração disso. As constatações feitas pela compositora são óbvias, mas ditas de maneira inovadora e provocativa. Passa a sensação de uma escrita completamente instintiva, que sai da ponta do lápis e alcança o papel por pura necessidade, não porque isso é basicamente o seu ganha pão.

And I know I’m a collaboration
Bacteria, carbon and light
A florid orchestration
A recipe of fortune and time
Yeah, it’s a lot to take in
When I try I see a short word
I see a short word
— Metal, The Beths

A roupagem evoca o sentimento de uma manhã ensolarada em meio a segunda semana de primavera ou de abrir a geladeira e descobrir pizzas guardadas ainda na caixa - o que for mais agradável pra você.

Sensorialmente, a reação entre ouvido, córtex, guitarras e harmonias vocais são instantâneas: essa música é The Beths. Não há muitas referências pra se embasar, e de certa forma se torna confuso como algo tão familiar pode existir numa espécie de vácuo estilístico. Mas é isso que os torna tão especiais. Sua singularidade tão simples.

O Twist aqui, entretanto, é que, apesar de todo o supracitado em relação ao arranjos e melodias, esse álbum é essencialmente sobre sobreviver na tristeza e em suas nuances e oscilações. Como o ser humano inerentemente tenta mascarar o estado de melancolia da maneira que pode e consegue.

No Joy e sua guitarra principal que grita Grunge é uma objeção enraivecida sobre não entender porque não se sente mais as coisas da maneira que se sentia:

Only level lately / Anhedonic on the daily / Wanna feel but I am failing, I am failing/ Facial expression wooden / Wanted to cry but I couldn’t / Tear ducts full, I felt you pulling at them / But it didn’t happen

(Apenas nivelada ultimamente, Anedônicono dia a dia; Quero sentir, mas estou falhando, estou falhando; Expressão facial de madeira; Queria chorar, mas não consegui; Canais lacrimais cheios, senti você puxando-as, mas não aconteceu)

Till My Heart Stops, com alguns elementos eletrônicos (que lembram de alguma maneira a introdução de alguma música de James Blake) é o ápice emocional de toda discografia da banda. A abordagem é esparsa e paradoxal e busca sentido na beleza do impossível. É ambiental e etérea o suficiente pra propor ao ouvinte um certo estado de contemplação até as guitarras do segundo verso começarem a quebrar o teto de vidro da cantautora e permitirem que a chuva caia sobre sua pele e sobre as nossas também, em um banho torrencial de sentimentalismo, com dos refrãos mais lindos e catárticos do ano.

Na última repetição do refrão que aos poucos se torna um mantra, a voz de Elizabeth ganha suporte de si mesma, empurrando e dando força, quase como seu subconsciente ganhasse vida:

And I wanna ride my bike in the rain
I wanna fly my kite in a hurricane
I wanna float out the top
I wanna dance till I drop
I wanna love till my heart stops
Till my heart stops

Entre a linda e confessional balada acústica Mother Pray For Me - que versa sobre o inevitável problema de comunicação entre mães e filhos e o amor inato que supera essa barreira - e a extremamente clichê e divertida Rondabout, que é o mais próximo que a banda já chegou do Pop Barroco, existem várias provas que esse é o álbum mais virtuoso e arriscado da banda, como se de fato Elizabeth tentasse provar sua capacidade de se carregar pra fora da inércia da depressão.

De forma paratextual, o nome da banda na capa do álbum da tantas voltas que quase se torna ilegível. Os quatro ponteiros, sendo dois deles galhos bifurcados que não podem indicar ao certo se é hora do peixe ou da maça, corroboram esse senso de que não existe um caminho direto, pavimentado e seguro pra sair de uma fase de extrema tristeza.

Porém, mesmo em meio a esse caos cheio de abstrações, onde queremos preencher cada centímetro do espaço para nos sentirmos menos vazios, a própria sonoridade de The Beths vira seu ponto de partida e de chegada. Dessa forma, as suas diferentes versões, que naturalmente, conforme a vida passa, vão se apresentando, não assustam tanto agora que já tomaram forma.

A mudança é constante, mas ela só acontece quando você sabe quem é.

No meu caso, ela só começa depois que eu busco meus pães. Os mesmos de sempre.

Never change, unless you do
Unless you want to

8.3

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Thundercat @ OPINIÃO - 23/08/25