Crítica | Séance (2000)

O horror do cotidiano

Apesar de feito para TV, Séance é dos melhores filmes de terror do início do milênio


Em uma escala, os filmes de Terror produzidos pela A24 seriam como os filmes da Disney (não Pixar) são para os do Studio Ghibli, se estes fossem os equivalentes ao Cinema de Kiyoshi Kurosawa. Divertidos, “profundos”, elevados e que, normalmente, apelam mais para o psicológico que para o escatológico, terrores como Hereditário, Midsommar, O Farol, Ao Cair da Noite, fizeram seus nomes entre os cinéfilos cansados com filmes de “susto” - ignorando o quão incríveis estes podem ser, mas isso é papo pra outra hora.

A questão é que o tal pós-horror só não é novidade, como está presente no Cinema desde o início do século passado, com obras como O Estudante de Praga (1913), A Page of Madness (1926) e Vampyr (1932) (para citar alguns) vindo a mente. Mas se a ignorância com filmes tão “antigos” é de se esperar, o mais preocupante é a visão limitada quanto a alguém tão contemporâneo como Kurosawa (que não, não tem nenhum parentesco com Akira).

De Cure (1997) à Antes Que Tudo Desapareça (2017), o diretor Japonês fez alguns dos melhores filmes de gênero e diversos que certamente fariam sucesso entre aqueles que procuram filmes para “pensar”.

Séance, um longa feito para a tv em razão de aspecto reduzida e que pode ser facilmente encontrado na internet com uma qualidade -razoável-, certamente oferece mais em sua econômica mise-en-scène que a luxuosidade da maioria das produções de hoje poderia sonhar. Dentro de seu pequeno quadradinho, Kurosawa é capaz de invadir casas e provocar uma experiência absolutamente traumática.

UM MINIMALISMO EXPANSIVO

Embora recentemente, com orçamentos maiores, o diretor tenha começado a se aventurar em produções mais rebuscadas - de invasões alienígenas à filmes de espionagem durante a segunda guerra mundial -, a marca de seu Cinema no início do século era fazer mais com menos. Tão menos, que o que de mais aterrorizante acontece em Séance nada mais é que uma referência visível à O Chamado, utilizando uma iconografia tão simples como uma garotinha com os cabelos no rosto, mas gerando efeitos que o pior dos monstros talvez não conseguiria.

A questão é que Kurosawa, dentro das paredes monótonas da casa dos protagonistas, consegue extrair os medos comuns da vida cotidiana para então sim misturá-los com a herança do terror. De acordo com o próprio, influenciado por Hitchcock e Ozu, é difícil pensar em alguém que melhor personifique a mistura, mesmo que ele vá mais além no gênero que o Mestre do Suspense. O medo das pessoas em seus filmes é o da solidão, do esquecimento, de uma vida tão monótona que torna aqueles que a vivem em fantasmas presos na Terra - e aí aquele efeito prático da mulher sem pernas funciona tão bem (embora ache que a tempestade enverede demais para o lado americano da coisa).

Em Pulse, no ano seguinte, ele atingiria o ápice dessa ideia, mas aqui a semente já havia sido plantada e seu resultado evidenciado - e o olhar grave, carregado e cansado de Kōji Yakusho, o ator favorito de Kurosawa nessa fase da carreira, é essencial para a execução dessa ideia.

ENQUADRANDO O HORROR NO DIA A DIA

Utilizando da famosa característica de Ozu de enquadrar dentro do enquadramento, em uma cena Kurosawa faz o clássico “estender lençóis até que algo apareça atrás”, mas a garotinha está tão longe que nem chega a ser um jumpscare, mas uma lembrança. E embora todas as suas aparições sejam eficazes (a da árvore mistura também sua temática do poder incompreensível da natureza), talvez nada supere toda a sequência que começa no parquinho, passa pela floresta e termina na caixa.

Com uma edição simbólica e que não apenas abusa do poder comunicativo da montagem, mas aterra ainda mais a sensação de horror iminente ao transformá-la em mais uma parte do cenário comum do cotidiano, é um momento chave que coloca em cheque a moral de seus protagonistas (Éric Rohmer certamente é outra influência) ao mesmo tempo que mancha a narrativa no melhor estilo Hitchcock (o close do baú) e prepara o terreno para questionar o aspecto sobrenatural da própria obra. No fim, a tal sessão do título é uma farsa mundana, que não deixa claro se Junko tem mesmo poderes psíquicos ou apenas os usa como maneira de fugir da mesmice decepcionante que se tornou sua vida.

Mas Kurosawa, acima de tudo, acredita no poder das emoções (recentemente isso tem se tornado cada vez mais aparente), e sabe que o guardanapo cor de rosa, por exemplo, é o suficiente para que o medo lógico de ter feito algo errado se torne em uma assombração irremediável - para os protagonistas e para quem assiste. A alma pode ter sido corrompida, e não há horror maior que lidar com isso, mas uma nem tão leve sugestão de que há algo a mais que nos cerca potencializa seus filmes de maneiras que os diretores de hoje sonham em atingir.

Será que sequer assistem Kiyoshi?

9

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