Crítica | Coringa

O cinema literalmente, desde o primeiro longa-metragem feito, tem tido o poder de influenciar e conversar com sentimentos profundos do seu público.

Isso pode ter impacto positivo como o movimento anti guerra em Hollywood nos anos 70 em resposta à Guerra do Vietnã, mas também pode agravar e aprofundar divisões da nossa sociedade. “Coringa” é um filme imersivo e psicológico que convida o público a acompanhar a loucura do seu protagonista Arthur Fleck (Joaquim Phoenix) enquanto ele vai se transformando no Coringa e faz isso como todos filmes deveriam tentar fazer, misturando aspectos técnicos cinematográficos com reflexões do mundo real e aprofundando as transformações na mente de um personagem. 

Que por mais que seja um personagem muito presente na cultura cinematográfica, especialmente dos últimos 30 anos e nos HQs desde sempre vinculado a um dos principais heróis de todos, essa é a primeira versão cinematográfica da história do Coringa. É notável que o personagem já tenha sido interpretado por Jack Nicholson, Heath Ledger e Jared Leto (infelizmente em um péssimo filme), tendo sido imortalizado pelo segundo. Agora colocamos talvez um nome ainda mais pesado que esses últimos dois interpretando o palhaço: Joaquin Phoenix. Esse que tem sido considerado um dos maiores atores em atividade traz uma performance absoluta que mesmo se outros aspectos do filme não funcionassem já seria uma ótima experiência apenas assistir a interpretação do ator por duas horas.

Essa é uma camada do filme, pois temos a presença de Phoenix em todas cenas e mais, toda a narrativa do filme se dá na cabeça de Arthur Fleck, ou no mínimo a partir de sua visão.

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Somos apresentados a uma pessoa já desde o começo do filme com problemas. Arthur trabalha em uma empresa de palhaços que aluga serviços para lojas ou hospitais, ele aspira em se tornar comediante enquanto assiste obsessivamente um programa de auditório, apresentado por Murray Franklin (Robert DeNiro), com sua mãe. O filme nos conta: ele tem uma doença que causa risos incontroláveis em situações de desconforto, esse recurso, claro, é ótimo para criar momentos de tensão no roteiro. Nos mostra também que ele frequenta uma psicóloga pública que controla seus remédios e auxilia o seu tratamento, esse tratamento é cortado pela prefeitura de Gotham mais ou menos ao final do primeiro terço de filme.

A representação do indivíduo contra o estado é um ponto no filme, ao mostrar uma Gotham com lixo acumulado aos montes pela rua.

Constantemente temos comentários sobre a política da cidade e a ineficiência e esvaziamento do poder público, especialmente por meio de uma TV que a mãe de Arthur sempre mantém ligada no seu apartamento. A relação do Coringa com sua mãe, interpretada pela Frances Conroy é um dos pontos de maior tensão, de maneira que sempre sentimos que há algo errado ali mas nunca sabemos exatamente o que. Mesmo ao final não temos certeza qual a natureza da relação e qual a verdadeira origem de Arthur. O que sabemos com certeza é que em algum momento da sua vida ela trabalhou para o milionário Thomas Wayne (Brett Cullen) e que ela espera sua ajuda para melhorar a vida dela e de seu filho.

Trazer Robert DeNiro para esse filme é, eu diria, essencial. Uma vez que a história da decadência de Arthur Fleck é uma releitura caricaturada e misturada dos clássicos “Taxi Driver” de 1976 e “O Rei da Comédia” de 1983. Ambos filmes de Martin Scorsese estrelados por DeNiro, e ambos partem da neurose e da decadência de uma urbanidade desmoralizada tomada pelo crime e pela indiferença dos ricos e poderosos pelas vidas dos mais pobres. Assim como Coringa. Mas a diferença entre esses filmes, especialmente “Taxi Driver”, é que Scorcese realmente examina a psiquê do homem médio urbano excluído da política e da vida pública mostrando uma história de decadência que termina tragicamente.

Enquanto Coringa é bastante raso em significado e análise, quase todas as “reflexões” são esfregadas na cara do espectador e por mais que haja trabalho técnico sobre isso, não reflete exatamente o sentido da análise.

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Isso é visto por exemplo pelo uso dos filtros azuis, amarelos e vermelhos, cores que esteticamente compõem a identidade do Coringa e os diferentes momentos da vida de Arthur. A escalada de cores é uma maneira de contar a história uma vez que temos a visão distorcida de seu mundo. As cores são narrativamente a progressão temática do personagem e funcionam como contraditório ao mundo que ele vê, mas não possuem exatamente um padrão de significado que se relacione com os sentimentos ou momentos de sua mente. A visão dele, por sua vez, é privilegiada pela edição que vai aprofundando os problemas de Arthur enquanto ele afunda na sua loucura. A fotografia acha planos em escadas e transições de salas e ambientes constantemente nos momentos em que o personagem está alterando sua personalidade e sua experiência de mundo.

O que não necessariamente funciona porque temos um personagem doente já desde a primeira cena.

Esses aspectos me levam a pensar que por mais que o diretor Todd Phillips tenha formatado seu filme como uma reflexão profunda sobre sociedade, ele na verdade esvaziou o conteúdo da discussão em si. O seu espetáculo visual e o preenchimento do tempo de filme com Joaquim Phoenix dão a impressão de apenas tentar fazer parecer que existe alguma ideia mais profunda de sociedade ali, quando na verdade tudo está na superfície do que vemos na tela, como uma afirmação pseudo profunda.

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O que, de fato há: Arthur Fleck representa o homem do neoliberalismo sem território e sem identidade que vê no esvaziamento da sua vida, no desemprego, no lixo e violência acumulados na rua e em um poder controlado por homens ricos e egoístas a razão de sua decadência moral. 

Quando ele diz “Sou só eu ou o mundo lá fora está ficando mais louco?” na verdade o filme está criando uma falsa simetria de medições na experimentação do mundo,

uma vez que nitidamente o personagem está ficando louco por causa dos problemas pessoais dele. Que tem a ver com o fato de a prefeitura de Gotham ter cortado seu tratamento, mas também com descobertas em relação ao seu passado e sua própria percepção de sua loucura e fracasso. Logo quando Phillips constrói os ricos, a TV e o Estado enquanto elementos que participam na decadência social, ele não é competente para comprovar isso no seu personagem, pois esses são apenas elementos periféricos na desconstrução de Arthur Fleck em Coringa. 

A interpretação, inclusive, não é consonante com as interpretações do personagem que o fizeram tão famoso. O Coringa de Phillips não é um farol do caos lutando contra os valores morais do mundo, que a partir de um passado de perdas cria a sua própria essência ao tentar demonstrar que até a mais justa das pessoas pode acabar que nem ele. O Coringa normalmente não é um personagem louco, apenas uma “força imparável” que tenta corromper a moralidade de fora para dentro. Nesta versão de 2019, as escolhas do roteiro criam um show auto-penitente e uma caricatura revanchista de uma pessoa que, de fato, perdeu tudo, mas por uma série de fatores que incluem os próprios erros, que não condiz com a ideia de que “um dia ruim” pode transformar qualquer um no Coringa. E, além disso, a construção de uma loucura para o personagem por mais que sirva no filme, não corresponde aos atos do Coringa porque tornam um problema mental como condicionante desses atos.

Por fim, essa criação de um mundo corrompido não é suficiente para a degeneração à violência individual que surge no filme inspirado no Coringa, porque ela vem de signos vazios e serve só para conversar com sentimentos ruins que se satisfazem com respostas fáceis.

Difícil saber se existiu uma intenção de realmente fazer um debate ou apenas se mirou na polêmica para promover o marketing do filme.

Dizer que “Coringa” é capaz de influenciar um movimento de violência revanchista seria superestimar o filme, mas com certeza ele brinca com limites perigosos, especialmente em um momento de acentuada crise no mundo em que o divisionismo e o sectarismo violento individual são fenômenos. Eu, particularmente, gostaria que, em 2019, o diretor Todd Phillips tivesse tomado mais cuidado com os caminhos para retratar o isolamento social de uma pessoa com problemas mentais.

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