Crítica | Ad Astra

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Acredito já ter escrito sobre, mas acho válido lembrar aquele que considero o principal valor em qualquer ficção científica: a capacidade da história de te fazer pensar sobre a vida humana.

Tudo bem, isso pode ser dito de qualquer filme, mas enquanto considero possível apreciar um bom mistério, ou uma boa comédia, sem a necessidade de refletir sobre minha vida, assistir à explosões e malabarismos no espaço apenas enfatiza a imensidão do vazio que o mesmo traz sem reflexões. Pois se olhássemos para o infinito a nossa frente e isso não nos trouxesse incertezas, inseguranças e perguntas, não seriamos nada além de poeira estelar.

“Ad Astra”, novo e badalado longa de James Gray, felizmente cumpre estas expectativas ao entregar um projeto que poderia ser fadado à mesmice após tantos filmes envolvendo astronautas nos últimos anos, e acaba sucedendo justamente por preferir explorar a incompreensível profundidade da mente humana em uma escala ainda maior do que sua jornada por estrelas e planetas.

Frase esta última que, aliada ao título que em latim significa algo como “rumo as estrelas” (o subtítulo brasileiro ajuda nesse sentido), pode ludibriar alguns espectadores por acharem que se trata, justamente, de viagens interestelares. Porém, e me corrijam cientistas se estiver errado (e dentro de alguns meses posso ver claramente os maiores nomes da NASA debatendo sobre o longa), este é um dos filmes mais cientificamente plausíveis desta última leva da ficção científica, demonstrando um futuro não muito distante onde bases permanentes na Lua e em Marte já foram instaladas, e o ser humano está prestes a sair do sistema solar. Há sutilezas interessantes, também, em pequenos detalhes que o roteiro e o design de produção entregam, como viagens comerciais a lua e o preço cobrado por um cobertor em uma dessas viagens, mas nada de carros voadores, desastres naturais elevados à milésima potência ou resgates impossíveis.

Nesse sentido, o roteiro que Gray assina junto ao roteirista de TV Ethan Gross (que já se alça para trabalhos maiores) funciona muito bem por centrar a base de sua história em algo que nós, como leigos, podemos julgar possível: uma equipe com a missão de buscar vida extraterrestre se perdeu e, para encontrá-la, o filho de um dos tripulantes - e, assim como seu pai, astronauta mais capacitado de sua época - embarca em uma jornada que é menos sobre o espaço e mais sobre a relação problemática que sempre teve com o pai e consigo mesmo.

Se a trama lembra “Appocalipse Now”, trocando o Vietnã pelo espaço sideral, o longa também faz clara alusão a outros tantos filmes situados no mesmo ambiente e, na maioria das vezes, sucede em evocá-los sem perder seu quê de originalidade. Pois se não há muito que a fotografia possa fazer nas tomadas externas - uma imensidão preta com pontinhos brilhantes e uma bola azul ao lado, não há como fugir -, o trabalho de Hoyte van Hoytema, responsável por trabalhos espetaculares no sútil “Her” e nos magnânimos “Interestelar” e “Dunkirk”, nas locações internas é digno de premiações. Desde planos que fazem clara alusão à “2001: Uma Odisseia no Espaço” à um jogo de cores persuasivo que brinca com o estado de espírito de seu personagem principal. Ele abusa, também, da ótima decisão do diretor em criar cenários fechados - com teto baixo, paredes estreitas, aparências cúbicas - e utiliza as sombras para ressaltar solidão, além de dar um relevo belíssimo aos adornos que tornam estas locações vivas, me lembrando de diversos cenários de “Blade Runner 2049”.

O design de produção, inclusive, é essencial para a potencialização dos temas trabalhados no roteiro. Em diversos momentos o personagem de Brad Pitt está encurralado em meio a estes mesmos lugares fechados, e o diretor consegue extrair com perfeição um senso de claustrofobia que claramente afeta, também, seu estado mental. Em uma conversa com a personagem de Ruth Negga que, inclusive, vive uma dor parecida com a dele, vemos uma gaiola vazia no quarto da moça, algo que por si só traz um simbolismo tão triste quanto apavorante. É provável que um dia passarinhos estiveram ali, mas, hoje, ela nem faz questão de sonhar com voar novamente.

Mas, voltando às tomadas externas, e são várias, o filme acaba impactando menos que outros de seus primos, e faço um destaque negativo para as aparências plácidas dos planetas que parecem não ter a mesma profundidade de campo que os cenários fechados. Algo que Gray consegue suprir com um excelente controle da misé-en-cene, evocando momentos de pura tensão e desespero que, ao contrário dos visuais, impactam mais nas sequências externas do que nas internas. Há uma cena de perseguição inventiva e conceitualmente interessante - piratas na lua, genial -, mas outras duas envolvendo combates com gravidade zero me pareceram mais como momentos para quebrar o ritmo pesaroso do longa do que adições valiosas para a experiência. E o filme sofre um tanto com seu ritmo, justamente por conta destas quebras e por depender da narração de Pitt para nos situar na história, pois por mais que a mesma tenha um efeito emocional, é utilizada em demasia - e não consigo não me perguntar o quão enlouquecedor (no bom sentido) seria assistir à este filme com uma noção ainda mais perdida de tempo.

Já um aspecto que merece destaque especial é a trilha sonora de Max Richter, que também desponta como um nome a ser acompanhado nos próximos anos. Ao empregar uma estética similar à de Hans Zimmer, com ruídos, zumbidos, acordes e sintetizadores esticados ao longo das cenas, ele pontua cada aresta do longa com temas que não tentam induzir emoção ao espectador, mas sim emulam as emoções de Roy. É quase uma psicodelia espacial, que viaja para longe no espaço e para dentro da mente ao misturar grandiosidade e paranoia. E se a mixagem e design de sons são precisos, apesar de não serem tão necessários como em outros filmes com a mesma temática, não é como se ambas se sobressaíssem perto da magnífica trilha.

E é importante ressaltar como “Ad Astra” é, em sua essência, uma experiência atmosférica e melancólica, que te faz sentir o peso nos ombros mesmo sendo, na maior parte do tempo, auto-indulgente. Afinal, são temas que merecem auto-importância e por mais que o longa queira claramente lhe fazer sentir esta importância a todo custo, ele sucede com êxito e isso se deve, principalmente, à brilhante performance de Brad Pitt que não tem de dividir as atenções com ninguém. E por mais que tenha notado a enormidade de planos fechados no rosto do ator ao longo da projeção, isso jamais me incomodou, muito pela forma como Pitt consegue passar todas emoções de Roy apenas com sutis mudanças de expressão, atingindo o ápice em uma cena onde lágrimas escorrem de um rosto que acabara de descobrir algo que, tristemente, sempre soube. Simplesmente não é o mesmo homem que, no mesmo ano, interpretou Cliff Booth. Não pode ser.

Já Tommy Lee Jones e Ruth Negga interpretam personagens interessantes e os desenvolvem muito bem, enquanto Donald Sutherland e Liv Tyler convencem com seus poucos minutos de tela, mas o show é inteiramente de Pitt porque que “Ad Astra”, mais do que uma ficção científica, é uma jornada afundo da mente de um homem profundamente marcado por acontecimentos passados e que, assim como o pai, procura no universo respostas para aliviar a solidão que o persegue. E é graças a isso que o longa ganha a capacidade de emocionar: se “Interestelar” precisou de uma reviravolta quase fantasiosa para mostrar como o amor é a força mais poderosa do universo, este filme de James Gray olhou para dentro e nos convida a ver como, as vezes, o que procuramos está bem na nossa frente.

E é isto que eu, pelo menos, procuro em filmes deste tipo. emoções sempre serão mais impactantes que ciência, não importa o quanto a segunda explique a primeira.

8.3

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