Crítica | Trenque Lauquen (Taipei)

Ficções como pistas

Vou me contestando a mim mesma: o Cinema de Laura Citarella


Notas do tradutor (Marco Leal):

Crítica escrita por Paula García Cherep, publicada em 17 de Fevereiro de 2023 no site da revista Argentina Taipei (e que pode ser conferida aqui).


As quatro horas e meia de Trenque Lauquen se estruturam com clareza em duas partes de duração simétrica. O fato principal é a misteriosa e voluntária desaparência de Laura. Em termos gerais, pode-se dizer que, enquanto a primeira parte mostra a investigação de dois personagens masculinos que tentam reconstruir os motivos pelos quais Laura se foi, a segunda parte dá voz à protagonista para que possamos ouvir sua versão da história. Pelo contraste entre a expectativa e a revelação, é como se no relato de Laura a película, de alguma forma, se voltasse contra si mesma.

A primeira parte entrelaça habilmente duas histórias que se referem a elementos que parecem um tanto esquivos. Laura desapareceu e são Rafael (seu namorado) e Chicho (seu colega de trabalho) quem saem à sua procura. É um duo de personagens antitéticos. Rafael é o catedrático um tanto histriônico e egocêntrico que se afasta por alguns dias da Capital. Chicho é um funcionário municipal com quem Laura trabalhou brevemente em Trenque Lauquen. Ao contrário de Rafael, Chicho quase não faz ou diz nada. Laura vai aparecendo na película, evocada por sua memória. A hipótese mais forte sobre o desaparecimento da protagonista não advém das entrevistas de Rafael com os diversos habitantes locais, mas sim dos pensamentos de Chicho: Laura teria sido motivada a partir da descoberta de uma história protagonizada por personagens que viveram em outro tempo, às vezes até em outro lugar. Acontece que, enquanto Laura estava em Trenque Lauquen, não foi tanto o tempo que dedicou ao seu trabalho na municipalidade, mas sim o fato de ter se visto absorvida ao descobrir, entre uns livros na biblioteca pública, uma série de cartas de amor. O que perturbou Laura nos últimos dias foi tentar descobrir quem foram essas pessoas e quais foram os caminhos seguidos pela história romântica. Sem postular uma hipótese concreta, as lembranças de Chicho sugerem que a investigação de Laura sobre essas cartas pode conter a chave para seu desaparecimento.

A segunda parte dá a voz a Laura através de uma gravação que ela, antes de partir, deixa para sua amiga Juliana. Laura conta as questões das quais estava cuidando e, embora mencione o assunto das cartas e o fato de ter envolvido Chicho nessa intriga, também revela um enigma paralelo. A partir de um fato que dominou os debates públicos ao menos por alguns dias, a saber, a curiosa aparição de um ser (um menino, um animal, algo de outro planeta?) na lagoa de Trenque Lauquen, Laura se aproxima de um casal que vive nos arredores da cidade e desenvolve uma relação singular com eles.

A divisão entre a primeira e a segunda parte é bem marcante. A primeira parte se encarrega de criar uma situação misteriosa sobre a qual o suspense aumenta ilimitadamente. A dinâmica e o volume que a música adquire na metade da película ressaltam isso. Há cerca de oito minutos de créditos exatamente no meio do filme. Se alguém presta tanta atenção a ponto de ler todos os nomes dos vizinhos de Trenque que aparecem nos agradecimentos, é porque esses oito minutos conseguem sustentar e até intensificar o suspense construído na primeira parte. A transição abrupta ocorre com o início da segunda parte, quando a música termina e a história de Laura continua, mas não a partir do ponto em que havia sido deixada.

Se o que sustenta a tensão durante os créditos é o mistério do desaparecimento de Laura e a intriga pela resolução de uma história romântica na investigação das cartas, a segunda parte tem um tom mais relaxado, ao menos durante os primeiros minutos. E, embora persista a dúvida sobre o desaparecimento de Laura, a história das cartas se dissipa e surge um novo mistério, com outras tonalidades. Todo o relato contado por Laura, junto com as incógnitas que levanta, mantém um certo clima de ficção científica. A expectativa de que, antes de atingir as 4 horas, haja alguma forma de resolução, de conexão entre as duas partes, não desaparece, mas vai se esvanecendo. O giro é tão abrupto que, por vezes, pode parecer que a extensão de Trenque Lauquen é alcançada pela sobreposição de algumas histórias que não necessariamente têm muita conexão entre si, de forma que aquilo que poderia ter sido um festival de curtas ou alguns filmes não muito extensos acaba compondo uma única coisa.

Essa última impressão não é correta. Embora a comparação com Histórias Extraordinárias ou La Flor seja tentadora, há uma diferença muito importante na maneira como as histórias se entrelaçam em cada um desses filmes. Enquanto nas películas de Llinás a unidade é dada por algo externo às múltiplas histórias que compõem cada filme — a extraordinariedade dos relatos em Histórias Extraordinárias ou a integração ao desenho de uma flor em La Flor, sempre suplementado pelo acompanhamento da voz em off —, em Trenque Lauquen as histórias têm uma ligação imanente, na medida em que nos dizem algo sobre a protagonista. Não conhecemos melhor Laura ao ouvi-la, nem muito menos pelo que Rafael, Chicho ou Normita possam dizer. É na sobreposição das histórias que sua verdade se revela. Assim, a segunda parte não é a demonstração de que Rafael estava na pista certa, nem que Chicho teve alguma chave, e nem por isso se trata de uma coleção de histórias heterogêneas sob a forma de relato emoldurado. Todo o filme constitui uma unidade, mas isso não significa que não fiquem perguntas em aberto.

Se há algo que se mantém tanto na primeira quanto na segunda parte é a forma como Laura não opta pelos objetivos mais habituais da vida burguesa. A situação com a qual o filme começa parece indicar que Laura tem a vaca atada, mas por algum motivo a solta e começa a correr na direção oposta. A incompreensão de Rafael reside precisamente nesse ponto. Ele não entende como Laura desaparece voluntariamente justo quando está para assumir um cargo em uma cátedra e está terminando de arrumar a casa onde vai morar com ele. Nas explicações que ele ensaia, Laura não fugiu, mas está se esforçando para segurar a vaca com ainda mais força. Segundo ele, Laura não pode ter enlouquecido, mas precisa sentir que é ela sozinha quem conquista o cargo, sem que ninguém (sem que Rafael) o resolva.

A Laura que conhecemos pelos pensamentos de Chicho não só contrasta enormemente com aquela versão, mas também se revela como mais verdadeira. Laura, segundo Rafael, não é mais do que o objeto de elucubrações constantes de um ego suficientemente inflado para não conseguir fazer espaço para algo mais que a si mesmo. Chicho, por outro lado, tem outra presença. Suas poucas expressões são o correlato de uma ação mental intensa. Tão intensa que abre o espaço para a aparição de Laura na tela, relegando Rafael a um plano não só secundário, mas até decorativo. Talvez seja por isso que durante toda a primeira parte, essa Laura segundo Chicho pareça ser uma Laura de primeira mão.

Todo o filme transcorre em Trenque Lauquen, mas não por limitar o cenário a uma cidade pequena as locações são estáticas. Embora não se trate de um road movie, a viagem de carro tem uma presença insistente nas duas partes, embora talvez seja mais marcante na primeira. Chicho é o funcionário de Mobilidade da municipalidade de Trenque, e seu vínculo laboral com Laura consiste em transportá-la a campos onde ela precisa buscar certas plantas nas quais ela trabalhará. Por isso, em grande parte, a relação entre Laura e Chicho se constrói nas viagens que compartilham. Também o vínculo entre Chicho e Rafael ocorre sobre rodas, porque Rafael precisa do carro de Chicho — e sua companhia — para se deslocar por diferentes pontos da cidade em busca de algum rastro de Laura. Nessas viagens se desenha diante da câmera a paisagem de Trenque: uma planura, uma regularidade de telhados baixos, com pouquíssimas exceções (a municipalidade, o hotel e o prato voador). Tudo acontece no outono ou no inverno com um céu majoritariamente cinza que tinge a paisagem e os personagens com tons opacos. Sobre esse fundo da cidade pequena, plana e cinza, as histórias que envolvem Laura adquirem um caráter especialmente cativante: o contraste com a paisagem as torna ainda mais atraentes.

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Se no início pode dar a impressão de que o assunto das cartas é algo singular, surpreendente e único com o qual Laura se depara, e que resulta tão inevitável para ela quanto para qualquer outra pessoa que também o encontrasse acidentalmente, a verdade objetiva do relato construído por Laura em torno das cartas, com a ajuda de Chicho, vai se relativizando. A primeira relativização aparece quando Rafael observa as mesmas marcas em azul feitas no exemplar do livro de Aleksandra Kolontái que Laura estava lendo e, a partir dessa observação, deduz algo que não corresponde em absoluto ao que Laura havia deduzido anteriormente. Para ela, as marcas em azul foram um convite para rastrear cartas e vidas de pessoas de outro tempo e lugar. Para ele, as marcas fornecem uma chave racional para o desaparecimento de Laura. A segunda relativização ocorre na segunda parte de Trenque Lauquen, quando Laura desenvolve uma fascinação por Elisa e Romina. Esses personagens habitam o mesmo espaço que Laura. Ao contrário da história das cartas, Laura tem uma relação direta com as protagonistas do novo mistério. Já não há necessidade de rastrear pistas e investigar documentos. Além da diferença entre as duas histórias e as duas situações, o que impregna a relação de Laura com ambas as histórias é a fascinação que elas despertam nela. Também chama a atenção que, nas duas ocasiões, ela possa ver o mesmo: um mistério a ser desvendado de "três entre os quais só há amor".

Pode-se então dizer que a unidade entre as duas partes consiste na capacidade de Laura de se deixar dominar por aquilo que a atrai, e, embora não seja qualquer coisa que a atraia, ela se entrega alternadamente a diferentes objetos. Sua relação com Rafael é um mistério que surge a partir de um campo externo; depois, ela se apaixona (um pouco) por Chicho e é absorvida pelas cartas até que, de alguma forma, essa atenção se desvia para a questão do yaguareté, que a conduz a Elisa e Romina. Finalmente, tudo isso desaparece para abraçar uma vida distante da civilização.

É o fechamento do sistema citarelliano(2) que, como nos melhores sistemas, se alcança não sem sustentar ou até mesmo abrir alguns enigmas. O vínculo mais evidente com o primeiro de seus filmes é dado pela presença das histórias emolduradas. Em Ostende, aparecem duas dessas que em Trenque Lauquen são a própria alma do filme: primeiro, a maneira hilária com que Paquito, o garoto do bar, comenta a ideia que tem para um filme. Hilária porque é contada com tanto luxo de detalhes que claramente está mais desenvolvida do que qualquer roteiro cinematográfico pronto para ser filmado. Melhor dizendo: a ideia já está filmada, pelo menos idealmente, na imaginação de Paquito. A segunda é a história que o personagem de Laura Paredes — em Ostende, apenas dois personagens têm nome — conta ao seu namorado sobre a relação que ela supõe existir entre aqueles três personagens que estão hospedados no mesmo hotel que eles. Desde o momento em que se encontrou com essas pessoas, desenvolveu uma fraqueza por descobrir o que os une e de que maneira isso acontece. Quando finalmente conta a história, ficamos sabendo da ficção que a protagonista estava construindo.

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Assim como em Ostende, em A Mulher dos Cães a protagonista não tem nome. Os dois filmes também coincidem no fato de que só sabemos o que suas protagonistas fazem e o que lhes interessa porque as vemos, mas não porque elas explicitam. Em A Mulher dos Cães, isso é muito mais radical, pois a protagonista, embora não seja muda, não fala. A protagonista de Ostende fala, poderíamos dizer, como qualquer pessoa normal. Mas descobrimos que o que realmente a ocupa é o espionagem amadora-especulativa que realiza não porque ela conte a alguém, mas pela maneira como se comporta. Só no final do filme ela fala sobre isso com seu namorado, Francisco, quando já sabemos que passou toda a sua estadia em Ostende espionando essas pessoas de longe. O que os últimos minutos do filme mostram parece confirmar as conclusões a que ela havia chegado, mas não parece tratar-se tanto de uma confirmação quanto de uma coincidência.

O desenvolvimento do estilo de vida de Laura em Trenque Lauquen — semelhante ao da protagonista de A Mulher dos Cães — é, assim como em outras ficções de Citarella, apenas mostrado, não explicado. O que aparece com maior ênfase no final do filme já havia sido antecipado em diferentes momentos das histórias emolduradas. Em um momento, Laura usa a camisa que Romina tinha antes. Também Normita, conversando com Rafael, conta um pouco surpresa que, antes de desaparecer, Laura dormiu em um quarto da casa de sua mãe sem dar nada em troca, nem dinheiro, nem uma atenção (nem mesmo uma caixa de chocolates). Além disso, conta que Laura deixou o quarto sujo e desarrumado e levou roupas suas (uma capa de chuva e umas botas). A desordem de que Normita fala é visível na segunda parte do filme, quando também vemos Laura com a capa de chuva e as botas. Já era anunciado na primeira parte, quando Laura ainda estava no hotel: seu quarto está cheio de livros e papéis, acumulados com tal desordem que não corresponde ao modo esperado de se habitar um hotel, ou seja, assumindo a transitoriedade e a necessidade de abandonar o quarto de modo que o próximo hóspede o receba como se ninguém tivesse ocupado antes. Vestindo a roupa primeiro de Normita e depois de Romina, é anunciado algo que nunca chega a ser explicitado, mas que se torna mais marcado nos últimos minutos, quando Laura já deixou a cidade. Lá, a vemos sucessivamente com uma manta, um poncho e um suéter que não havia usado previamente. Ela troca de roupa mesmo depois de andar há alguns dias sem bagagem e sem dinheiro. Recebe uma bebida quente, um pedaço de pão e uns sapatos apenas por ter se cruzado ocasionalmente com pessoas hospitaleiras. Os detalhes que Normita comenta e que horrorizam Rafael são apenas algumas das estratégias que mostram como Laura foge da ideia burguesa de ganhar as coisas com nada além de esforço próprio para se retirar a um espaço onde as relações com as pessoas e com as coisas são organizadas de acordo com outra economia.

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A fascinação pela tarefa investigativa, por outro lado, é explicitada, tanto pela cumplicidade de Laura com Chicho no caso das cartas quanto pelo que Laura relata em sua gravação. Mas, longe de ser uma concessão que revela tudo, essa explicitação esconde muito. A fascinação com a qual Laura fala sobre suas investigações corresponde à fascinação com a qual nós, espectadores, desejamos que Laura saiba mais, para que possa nos contar mais. Nesse sentido, há uma entrega ao que o filme diz que corresponde à entrega de Laura aos objetos que despertam sua curiosidade. Por outro lado, poderiam ser rastreadas as pistas disseminadas por todo o discurso de Laura para desvendar algo que não faz parte do que é explicitado; ou seja, que suas histórias têm um caráter discursivo-especulativo, mas não necessariamente objetivo. Por exemplo, na história das cartas, a descoberta de que na cidade há fotos de uma professora cujo nome ninguém conhece é o que permite conjecturar que aquilo que nas cartas parecia referir-se a uma amante poderia referir-se a uma filha. Na história da segunda parte, tudo gira em torno da suposição de que duas mulheres convivem com uma criatura da qual só sabemos que não é humana. Laura se aproxima do casal movida pelo desejo de saber algo sobre esse ser e, talvez, conhecê-lo. Mas o que desperta o interesse da protagonista não só fica fora de campo para nós, mas também para ela. Embora as duas mulheres a recebam com amabilidade em sua casa, Laura reconhece em muitas ocasiões ao longo de seu relato que ela mesma não conseguiu entender sua relação com elas. Quando acha que está em confiança, não está; quando acha que estão conversando sobre uma coisa, resulta que se tratava de outra. As conversas entre as três poderiam ser tanto sobre uma criatura sobrenatural quanto sobre a gravidez de Elisa.

Enquanto isso, nunca se duvida de que Laura esteja no uso correto de suas faculdades. Sua sanidade é assumida (por Rafael), enunciada (por Chicho) e não discutida (por Juliana). Talvez, nas risadas que Elisa e Romina compartilham na primeira vez que recebem Laura — quando ela conta que é a criatura que a motiva a se aproximar delas —, essa sanidade possa estar sendo questionada, mas só a vemos difusa em um canto da tela enquanto riem no mesmo plano onde predomina a figura nítida de Laura, que silenciosamente relaxa enquanto parece refletir sobre como os últimos acontecimentos confirmariam suas hipóteses.

Na cena final, Laura se deita ao lado de um lago. A câmera faz um panorama percorrendo a paisagem próxima e, quando volta, Laura já não está mais no mesmo lugar, como se nos tivesse sido mostrado o objeto que mais recentemente despertou sua fascinação. O último dos objetos ao qual ela decide se entregar.

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La imposibilidad de documentar la poesía

O único documentário dirigido por Citarella registra Mercedes Halfon tentando assumir a função que sua amiga Juana Bignozzi lhe confiou ao ceder-lhe em seu testamento a propriedade intelectual de sua obra. Halfon, no apartamento de Juana, tenta compilar o arquivo deixado pela poeta. Esse legado não é apenas caótico — o que é lógico, já que é a primeira vez que alguém se depara com a tarefa de transformar os papéis espalhados pelo apartamento de Bignozzi na categoria de "arquivo" —, mas também convive com a infinidade de objetos pessoais que pertenciam a Juana, entre os quais Halfon precisa se fazer espaço para cumprir com a tarefa que lhe foi incumbida. Um tanto sobrecarregada e temendo que algo se perca em sua primeira inspeção dos objetos pessoais de Bignozzi, Halfon decide chamar suas “amigas do cinema”. O documentário de Citarella encontra sua razão de ser, então, na presunção de uma poeta sobre a autoridade da câmera para registrar fatos ou coisas com certa objetividade; dessa forma, parece, a princípio, secundar a pressuposição de Halfon. Vemos a revisão das posses da poeta, a consulta a arquivistas sobre a forma de preservar o material, e os esforços de Halfon para ser fiel à vontade expressa de sua amiga.

Em uma entrevista recente, Citarella afirma que “em Las poetas visitan a Juana Bignozzi aparece uma coisa que depois levei para este filme”. Trata-se de algo bastante óbvio. Revisando a biblioteca de Bignozzi, a cineasta encontra o livro de Aleksandra Kolontái que desencadeia o enigma das cartas na primeira parte de Trenque Lauquen. O registro feito pela câmera tanto no documentário quanto na ficção deixa claro que em ambos os casos se trata exatamente do mesmo exemplar. A voz em off da diretora diz em Las poetas…: “Esse livro foi parar em outro filme que estávamos fazendo na época”.

A transposição do objeto de um filme para o outro não responde a um capricho, mas encontra justificativa nessa lógica interna ao sistema. Um dos poemas de Juana, que pode ser lido como uma transparência impressa sobre uma imagem de arquivo da poeta, diz:

Eu vou respondendo a mim mesma poemas que respondem a outros poemas

Citarella explicita como, ao levar o livro de um filme para o outro, está ao mesmo tempo interpretando (ou seja, inventando) e sendo fiel à vontade de Juana. Sua voz em off indica que, assim como a poesia serve para cruzar duas coisas que nunca haviam se cruzado, produzindo algo novo a partir dessa união, o cinema faz o mesmo através da operação de montagem. A transposição explícita do objeto que nasce em um filme para integrar outro acaba por ter ramificações menos evidentes que a operação de transposição inicial. Citarella espera que, se em Trenque Lauquen aparece um objeto exógeno, esse mesmo objeto também carregará consigo outros elementos próprios de seu lugar de origem. Junto com Kolontái, Citarella transporta para Trenque Lauquen Halfon e Bignozzi. Se a responsabilidade que Halfon assumiu é a de manter viva a memória de sua amiga, é a cineasta quem, na transposição de objetos, se assegura de espalhar o legado de Juana Bignozzi para além do filme cujo título inclui o nome da poeta. Esse gesto é o que pode ser considerado o propriamente poético do documentário.

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Mas o envio não termina aí: em Trenque Lauquen, há um reconhecimento explícito desse objeto. Em uma conversa entre Laura e Chicho, no que provavelmente é o momento mais arbitrário da especulação de Laura, ela chama a atenção para uma nota que encontrou entre os livros e as cartas, que diz: “Minha resposta é Juana”. Laura insiste na importância dessa nota. Embora seja a única menção a uma Juana, o nome está por toda parte: entre os livros da biblioteca — que, segundo as conjecturas de Laura, pertenciam à autora das cartas de amor —, junto com o de Kolontái há um livro sobre Joana d’Arc traduzido por Juana Castro e outro sobre Sor Juana Inés de la Cruz. Portanto, as Juanas devem ser importantes. Não é necessário mais nada para convencer Chicho, que responde: “Claro, mil Juanas”.

Se o livro de Kolontái é a coisa que conecta o documentário com a ficção, em um nível menos explícito aparece algo mais. Mercedes Halfon, ao aceitar a propriedade intelectual da obra da poeta, assume imediatamente a obrigação de não trair a obra nem o nome de Juana Bignozzi. O que descobrimos nós, espectadores, antes dela é que, para não cometer nenhuma traição, ela não deve tratar essas coisas como se fossem um vaso de cerâmica. Isso tem um lado positivo e outro mais ambíguo. É positivo porque entre as propriedades de Juana há um vaso que Halfon recebe, e que a poucos minutos de iniciado o documentário fica em pedaços. O lado ambíguo reside na complexidade da tarefa que assume, mesmo quando ignora todas as implicações do que está fazendo.

O documentário é uma constante sobreposição do uso da câmera como dispositivo de registro — o que não é mais do que uma resposta gentil ao pedido de ajuda da jovem poeta Halfon — e de uma reflexão meta-cinematográfica sobre esse registro. No nível do registro, a câmera evidencia tanto o estado caótico do legado de Bignozzi quanto o desconcerto da testamenteira designada pela poeta. Halfon não tem regras claras sobre como proceder. Nem mesmo o testamento deixado por sua amiga é claro para ela, a ponto de ter que interpretar a vontade de Juana. Por outro lado, quando enfrenta o conjunto de objetos que foram propriedade de sua amiga, descobre um lado dela que lhe era desconhecido. Ela se pergunta por que Juana teria tantos elefantes de brinquedo ou tanta roupa de festa. Acaba inventando histórias como os personagens de Laura Paredes, embora, ao contrário deles, não o faça por estar tomada por uma fascinação, mas com um certo pesar. Cria pequenas ficções porque o amor por sua amiga e a responsabilidade que assumiu a colocaram na situação de ter que inventar quando se depara com um vazio. No nível meta-cinematográfico, revela-se a inadequação da câmera para exercer a função de registro. Cada cena se revela como uma encenação. O que para Halfon aparece como caótico, depois se mostra abertamente como uma totalidade manipulada para que eventualmente certos objetos se destaquem sobre outros. As cineastas, com a simples intenção de cuidar dos seus enquadramentos, pedem a Halfon que se mova em uma direção e não em outra, que mova os livros ou os cartões em determinado ângulo, e que até mesmo se cale quando sente o impulso de manifestar interesse por algo que acabou de encontrar.

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Estabelece-se uma espécie de duelo entre as vozes em off de Halfon e Citarella. Mercedes questiona a certeza que inicialmente tinha sobre o poder de registro da câmera. Ela lamenta que Laura proponha coisas o tempo todo, das quais nenhuma tem muito a ver com a figura da poeta falecida, provavelmente porque Laura “não conhece muito sobre poesia”, e observa que, enquanto ela está preocupada com os documentos e arquivos, Laura não consegue deixar de pensar em um filme e suas cenas, ou seja, em uma ficção. Ela não parece estar errada. Enquanto vemos Laura diante da câmera lendo pela primeira vez os textos de Juana, sua falta de familiaridade com esse mundo se torna muito evidente. Enquanto sua voz em off, com tom desconfiado, se pergunta se é possível filmar um poema, em vários momentos do documentário filmam-se — literalmente — poemas de Bignozzi: filmam-se os livros, filmam-se folhas com poemas impressos, ouvimos Juana ou amigos de Juana lendo-a.

Nem a filmagem de poemas impressos em folhas, nem a de livros amontoados, empilhados ou espalhados sobre uma mesa faz justiça a Bignozzi ou à poesia em geral. Mas o fato de que o documentário não realize no nível do registro o que se propõe em um nível enunciativo, e que vá apresentando a certeza “de que o cinema, faça o que fizer, vai trair a literatura”, não é motivo para afirmar que se trata de um filme falhado. A filmagem de folhas, livros ou palavras é falha porque é pouco poética, mas o filme não se esgota nessas tomadas. Que, apesar da seriedade com que abordam a tarefa, Halfon não consiga sair de seu desconcerto nem Citarella consiga ocultar sua inadequação, encena uma tragédia que, por não ter maiores consequências — porque, como diz a própria Juana Bignozzi, a poesia não é algo importante —, resulta cômica. Há, portanto, uma consciência acerca da falta de poesia desses planos que buscam uma certa fidelidade literal com a literatura. A comédia também aparece no momento mais documental do filme, quando reproduzimos material audiovisual de arquivo e vemos como o argumento de Juana sobre o caráter pouco importante da poesia a leva a afirmar que ela não deve servir para mais nada além de amparar alguém e, em última análise, dar forças para tomar o palácio de inverno.

Em cada instância da produção de ficções, seja por fraqueza, como em Ostende e Trenque Lauquen, ou por necessidade, como em Las poetas visitan a Juana Bignozzi, manifesta-se a diferença irreduzível entre o objeto a ser interpretado e a subjetividade de quem o interpreta. Isso não quer dizer que não haja objetividade ou que a coisa careça de materialidade porque o mundo não é feito mais do que de interpretações. Assim como nenhuma das versões de Laura que nos são apresentadas em Trenque Lauquen resulta verdadeira isoladamente, na medida em que a verdade de Laura aparece na sobreposição de todas elas, o mesmo ocorre com cada uma das pequenas ficções que compõem o sistema citarelliano. A necessidade de transportar elementos de um lado para o outro tem o efeito de que, com eles, todas as Lauras e Juanas convivem em um e outro universo. Nessa sobreposição ou convivência de subjetividades, a arbitrariedade fica exposta como tal e, portanto, relativizada. Nessa sobreposição, o sistema exibe sua poesia e sua verdade.

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Notas:

1 A excepción de unos pocos minutos al final, antes de los créditos, cuando Laura llega a la localidad de Fortín Olmos. Esos minutos coinciden con una ampliación del plano, que aprovecha toda la extensión horizontal de la pantalla.

2 Me atrevo a llamarlo así porque las tres ficciones (Ostende, La mujer de los perros y Trenque Lauquen) llevan la firma de Laura Citarella como directora. De todas formas, valdría la pena prestar también atención a la medida en que esta obra es producto del trabajo conjunto de todo El Pampero cine y, más precisamente, de los aportes de quienes colaboraron en la redacción de sus guiones en cada caso; Laura Paredes en Ostende y Verónica Llinás en La mujer de los perros, de la que también es codirectora. Lo mismo sucede con el documental Las poetas visitan a Juana Bignozzi, codirigido entre Citarella y Mercedes Halfon.

3 Entrevistada por Diego Lerer para Infobae.

4 Como dice Bruno Grossi en “Cine y poesía están condenados a desconocerse”, Praüse, diciembre 2020.

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