Crítica | Billie Eilish - WHEN WE ALL FALL ASLEEP, WHERE DO WE GO?
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Ah, o que a internet não faz com as pessoas.
Vindo do fino ar que respiramos, como um passe de mágica, ou um relâmpago em uma noite aparentemente livre de nuvens, se criou a narrativa de que a cantora norte-americana, Billie Eilish, é a responsável por tudo que há de pior no mundo da música. Que sua imagem de aborrecente é algo que já está saturado, que sua personalidade é falsa, que seu talento é mínimo e que ela não deveria ter um contrato com qualquer gravadora. Bem, pelo menos a primeira destas afirmativas é correta, mas e as outras três?
No ramo da crítica - sela ela cinematográfica, musical, literária, esportiva, etc - especialistas e pseudo especialistas trabalham com elementos considerados, por muitos, subjetivos. O que faz uma produção boa? O que faz uma direção boa? O que faz um jogo bom? Enquanto estas perguntas necessitam de muita, mas muita teoria e conhecimento envolvido para que se formule uma resposta autenticamente exata, há um elemento mais fácil de quantificar e analisar: as pessoas que exercem tais atividades. Um bom atleta é aquele que faz mais gols, pontos, ou corre mais rápido. O bom ator é o que consegue expressar mais emoções. E a boa cantora, bem, já deu pra entender.
Billie Eilish não é, de forma alguma - e se você afirma que sim, está mentindo para si mesmo -, uma má cantora. A garota de 17 anos, crescida em uma família artística, exerce um refinado controle de sua voz desde o começo de sua carreira e isso se acentua em seu álbum de estreia, “When We All Fall Asleep, Where Do We Go?”. Álbum este que, com pouco mais de uma semana de vida, já tomou contornos históricos. Longe de mim, no entanto, declarar que Eilish é um gênio musical ascendendo na nossa frente, mas todo o hype e polarização quanto a recepção deste projeto foi além de qualquer estreia que consiga me lembrar em toda a década, que já está prestes a acabar. E isto é, caso vocês não saibam, um excelente sinal, de alguém que tende a, pelo menos, mudar um pouco as coisas.
E apesar de o álbum flertar com gêneros, como ditos antes, saturados pela imagem de sad boy (sim, a figura depressiva foi muito mais associada a artistas homens nestes últimos anos), há um leve toque de originalidade e de algo feito em casa, obviamente por conta de o produtor do disco ser seu irmão, o também ator Finneas O’Connel (“Glee”, “Modern Family”). Pop, eletrônica, trap e suas sub variações se mesclam a todo o momento. O baixo soa como o instrumento central, sendo distorcido, remixado, escondido ou evidenciado em cada uma das produções.
Na excelente abertura,“Bad Guy” (a primeira faixa do álbum, “!!!!!!!” tem apenas alguns diálogos), o instrumento inicia a faixa de forma ao mesmo tempo cadenciada e frenética, com Eilish o acompanhando enquanto a produção se recheia gradativamente em uma relação orgânica com sua voz. Infelizmente, há aqui um final sintético com uma batida trap que foge da excelente atmosfera, sombria e convidativa do restante da faixa.
Então, chega a música que terei mais vergonha de comentar, mas desde já informo que não esconderei meu preconceito. Desde que a vi em entrevistas e ouvi sua música, suspeitava fortemente da influência de drogas na vida de Eilish, inclusive, a considerava o mais próximo de uma versão feminina de The Weeknd (o de 2011) o que, friso, considerava apenas uma característica (que, inclusive, foi parte crucial no melhor projeto do cantor canadense, “Trilogy”), não uma crítica, afinal, a vida é dela e ela faz o que quiser.
Porém, estudando o álbum e um pouco mais sobre sua vida, descubro que a mesma é uma advogada do não abuso de substâncias e isso é brilhantemente exemplificado em “xanny”, uma faixa tematicamente similar à “Here” de Alessia Cara, onde Eilish se mostra alienada perto de seus amigos que apenas querem se drogar e não viver propriamente. E é lindo ver como, apesar de madura, ela demonstra uma inocência e dúvidas dignas de uma adolescente, ao perguntar, na primeira linha da música (sem produção, voz limpa) “o que há sobre as drogas”. Após isso sua voz é distorcida sempre que a batida pesada invade, e volta ao normal quando um quase alegre piano toca ao fundo. A química entre ela e seu irmão é nítida na faixa, que termina ainda melhor do que começa com todos os elementos se combinando, lembrando, dessa vez, Lorde e seu maravilhoso “Melodrama”.
Percebam como já a comparei com três artistas inteiramente diferentes, mas a qual ela mais se assemelha, na verdade, é outra que ficou famosa, pelo menos no Brasil, por conta de um meme: Lana Del Rey. Além dela, os rappers Tyler The Creator, A$AP Rocky, Earl Sweatshirt e Drake também fazem parte de seu mapa artistral (não acredito que escrevi isso), mas infelizmente quando ela tenta utilizar a ostentação o álbum atinge seu ponto mais desconexo, na pesada “You Should See Me In a Crown”. Poluída sonoramente, lembrando até mesmo Death Grips (ou “Yeezus”, para facilitar), a faixa destoa do álbum e liricamente é apenas uma declaração de que a própria um dia vai vestir uma coroa e então vai fazer todos se curvarem a ela, algo tão comum de se dizer que apenas ignoramos hoje em dia. Não é uma tragédia nem nada, mas sua ausência faria bem ao álbum.
Aliás, estou esperando ansiosamente por uma ficha técnica mais detalhada do projeto, pois tenho quase certeza que a deliciosamente profana “all good girls go to hell” usa de sample, ou pelo menos toma de inspiração, duas músicas que não deveriam funcionar em conjunto. A batida insistente parece com “Heartless” de Kanye West e o curto drop ao final do refrão me leva de à “m.a.a.d city” de Kendrick Lamar. E as letras são minhas favoritas do disco, utilizando da dicotomia entre o céu e o inferno, Eilish entrega figuras de linguagem provocativas e ousadas, chama Deus de mulher e diz que até Ela (Deus) um dia vai precisar de seu oposto, Lúcifer, a seu lado.
No entanto, em alguns momentos fica clara a inexperiência dela com suas letras e a tendência de querer explicá-las, como em uma linha no final da ótima “wish you were gay”. Faixa esta que causou polêmica, pois Eilish diz que preferia que o garoto que havia terminado com ela tivesse feito isso por, na verdade, preferir outros garotos. É uma ideia egoísta, mas venenosa na medida certa e cantada em uma contagiante e divertida melodia. E é sua insegurança com relação a estes garotos que rouba a cena na balada que encerra uma excelente primeira metade do disco. Regada a um belíssimo piano - tocado por seu irmão - “when the party’s over” consta com os melhores vocais da cantora, ajudados por um angelical coro que vem e vai e que, pacientemente, terminam a faixa com minha quote favorita de todo o álbum:
Quiet when I'm coming home and I'm on my own
I could lie, say I like it like that, like it like that
I could lie, say I like it like that, like it like that
A partir daí fica claro o que já deveria ser. Eilish é uma jovem de 17 anos, dando seus primeiros passos na música - e são passos gigantescos, afinal seu primeiro álbum já está no topo da Billboard 200 -, e ela ainda não sabe exatamente o que é artisticamente, e atira para diversos lados com efeitos inevitavelmente variados.
Ao brincar com diferentes vozes na divertida “8” não pude não sorrir ouvindo o que mais parece ser um exercício incompleto. Ao tentar ser mais sensual e adulta em “my strange addiction” ela é persuasiva, mas cai em um território muito já pisoteado antes liricamente e a produção é dotada de algumas balacas para tentar fazer a faixa parecer mais significativa do que realmente é. Ao brincar com perspectivas diferentes em suas letras, no entanto, ela encontra a única joia dessa segunda metade em “bury a friend” onde - além de investigar a condição e influência dos sonhos e do sono em seu trabalho ao cantar da perspectiva do monstro embaixo de sua cama (ou dentro dela) - a produção flerta com a paranoia graças a uma batida isolada e distorções pontuais em seus vocais, a transformando em uma espécie de pesadelo controlado que, apesar de não atingir todo seu potencial, se torna impossível de ignorar. A faixa, inclusive, engole um tanto da sugestiva “ilomilo”, que por não mudar tanto a energia acaba passando quase despercebida, injustamente.
E é interessante, apesar de que não seja positivo para o projeto em si, que ele termine com as três produções mais “clichés”. “listen before i go” é uma tentativa de se colocar na pele de uma pessoa com impulsos suicidas e, apesar de a intenção ser louvável, a musicalidade, também centrada no piano, é pálida e pouco atrativa e quase o mesmo pode ser dito da monótona “i love you” e sua sequência, “goodbye”, onde ela apenas canta sobre um relacionamento terminado como tantas outras e outros cantaram neste e em vários outros anos, as salvando dos ostracismo apenas por conta de suas habilidades vocais. As três são, de longe, as letras que mais condizem com sua idade e com a imagem que muitos criaram dela: uma menina melancólica que canta músicas de amor frustrado de adolescente.