Crítica | Yesterday
Primeiramente não, não existiria Ed Sheeran ou Coldplay sem os Beatles.
O mundo sem o quarteto britânico seria consideravelmente mais chato, menos sentimental e colorido e com consideravelmente menos compositores musicais. Na verdade não só musicais, mas das mais diversas áreas artísticas imagináveis. Porém, como o filme não nos mostra, é legal brincar de quais seriam as consequências reais sobre o mundo que vivemos hoje e como ele estaria se “Something” ou “Help” nunca tivessem saído do papel. Provavelmente ainda usaríamos mesóclises e ninguém teria descoberto o fogo.
Essa é a graça na maioria dos filmes escritos por Richard Curtis. São comédias românticas eficientes, demasiadamente fantasiosas mas com premissas ótimas e cativantes o suficiente para nos convencer a não pensar muito sobre algumas falhas estruturais e narrativas - embora elas existam -. Nesse sentido, o meu filme favorito, About Time, vacila em algumas questões sobre a viagem no tempo mas pouco me importou, subjetivamente falando, porque no ponto em que elas ocorrem, eu já estava muito investido nos personagens daquela história. Essa é a principal qualidade da escrita de Curtis.
Yesterday de cara foca em nos mostrar a vida de um músico completamente frustrado e fracassado. Jack Mallik não consegue engrenar com sua vida dos sonhos, embora sua agente e amiga Ellie de tudo de si para que isso aconteça. Aqui temos o nosso casal, e sim, tudo sobre o romance deles é o mais clichê possível, o que não quer dizer que não podemos aproveitá-lo. Na verdade, a química entre Himesh Patel e a ótima, e cada vez mais consolidada, Lilly Appleton (Baby Driver) carrega esse arco do filme quando todo resto dele é trivial. Os dois funcionam de uma maneira extremamente orgânica enquanto estão juntos em cena, o que ameniza um pouco a previsibilidade daquela velha fórmula dos dois amigos. Um é apaixonado pelo outro que nunca cogitou um existir interesse romântico ali. A grande descoberta. Um grande problema. Um dos dois se relaciona com outra pessoa que esteja dentro do círculo social deles. Grande gesto romântico. Juntos no fim de tudo.
Mas o ponto focal do filme não é a sua sub-trama romântica - ou não deveria ser- . Um mundo sem a maior banda de todos os tempos. É quase irracional pensar nisso. Depois de ser atropelado por um ônibus, após um blecaute global de 12 segundos, Jack acorda sem dois dentes e em um mundo onde aparentemente ninguém mais conhecia os Beatles. Antes de qualquer coisa, Curtis, de forma inteligente, evitou que a banda fosse a única coisa que sumisse da memória das pessoas. Entre a inexistência da Coca-Cola e algumas outras coisas, o roteiro evitou a obviedade e cair na limitação da intervenção divina que acontece especificamente para o nosso personagem principal.
O resto do roteiro funciona bem ao prestar um tributo para os Beatles, ao dizer, implicitamente, que até o músico mais fracassado do mundo conseguiria destaque com as letras escritas por eles. De fato, todo o trabalho lírico da banda é atemporal. A premissa, que já incentiva nossa imaginação por si só, é melhor trabalhada durante o filme, que em função de boas atuações consegue criar a atmosfera necessária para nos permitir pensar que aquela seria a primeira vez escutando os grandes clássicos da banda. Aliás, a própria cena de Yesterday sendo tocada pela primeira vez na história é realmente convincente pelos olhos de quem nunca a tinha ouvido.
Há uma cena que fica em evidência, com a participação de Sheeran - que aliás está ótimo no filme, dentro do que poderia fazer -. Uma competição que culminaria em quem seria o melhor compositor entre os dois. Sheeran escreveu de fato algo que poderia estar no seu próximo álbum - naquele nível de piegas que só ele consegue alcançar - e Jack cantou “The Long and Winding Road” . A diferença entre as duas composições é algo cabal, logo, embora repetitivo, se torna importante mencionar novamente que, como um tributo, esse filme faz o seu papel da melhor maneira possível, conseguindo destacar as cores inacabáveis dentro do repertório da banda.
E assim a narrativa continua, se dividindo entre dar atenção para Jack e Ellie ou para própria história de Jack. Quando opta pela segunda, é onde os melhores momentos do filme se encontram, quase todos sendo ocasiões envolvendo música, desde ótimas situações cômicas até acontecimentos sinceros e vulneráveis.
A história também, de maneira acertada, não possui um antagonista concreto se não o próprio conflito interno de Jack por estar se apropriando completamente das letras. A personagem extremamente caricata (acredito eu que propositalmente) de Kate McKinnon flertou com essa função, mas felizmente o roteiro não se entregou a algo tão convencional. A própria repreensão do protagonista faz esse trabalho muito bem, apesar de poder ter sido infinitamente melhor explorada ou intensificada.
Porém, fica claro que esse não é o objetivo do filme, muito menos o seu tom, onde a leveza sim é bem confeccionada e há diversas coisas para se rir em Yesterday (o personagem de Joey Frye, Rocky, é o grande responsável por esses momentos). Naturalmente, a história principal cede ao romance no terceiro ato, mas não é nada que incomode perto de uma sequência sobre John Lennon que simplesmente não deveria existir. Todavia, Yesterday com certeza vai agradar a maioria dos fãs da banda como filme pipoca que se propõe a ser, além de com certeza conseguir incentivar algumas almas novas e mais desinteressadas a pesquisar sobre.