Crítica | Kendrick Lamar - good kid, m.A.A.d city
álbum disponível no fim do post
Kendrick Lamar era uma criança boa. Uma entre várias, talentosas, promissoras, que tiveram a casualidade de nascer em um local marginalizado, injustiçado, estereotipado, e que apesar de ser a casa de alguns Rappers que você já ouviu falar, nunca conseguiu mudar sua reputação, nem com a ajuda deles. A grande parcela dessas crianças não consegue sair dali, não apenas fisicamente, mas mentalmente ficarão sempre marcadas por sua origem, por conta de um preconceito tão absurdo quanto discriminar alguém pela cor da pele. Talvez Kendrick não tinha esperanças de realmente mudar sua vida, mas desde lá ele já estava fazendo o melhor com o que o ambiente o dava. Aqui ele nos diz que a má cidade, torna o filho. Nesse caso, não.
"good kid, m.A.A.d city" é mais do que um álbum, ou um filme sonoro, é um estudo sobre a vida em Compton, uma cidade no sul da Califórnia conhecida por sua violência. Com suas narrativas ultra realistas ele contextualiza diversas histórias, e o que impressiona é que o que para nós é brutal, para ele é mais um dia comum. "If I told you I killed a nigga at sixteen, would you believe me?"Ele desafia.
Tudo começa com "Sherane..." ou a filha do mestre Splinter, das Tartarugas Ninjas. Com uma batida lenta, atmosférica, que permeia boa parte do álbum, ele rima de forma cadenciada sobre um Kendrick mais jovem, de 17 anos, que apenas queria sair com sua namorada. Esse primeiro passeio nos leva inteiramente para seu crescimento, e é irônico, pois nunca testemunhamos a "good kid" sem ser na maravilhosa foto que se tornou a capa do álbum. Testemunhamos apenas o que se tornou dela quando influenciada pela "m.A.A.d city".
Um jovem de 17 anos que quer começar a fazer rap e traz suas primeiras tentativas, uma delas, "Bitch Don't Kill My Vibe", é até hoje uma de suas melhores músicas, e a única totalmente fora da narrativa principal. Aqui é o Kendrick daquele momento, falando sobre sua carreira em uma produção magra e iluminadora, quase aconchegante, um momento de paz em meio a todo a brutalidade. Mas K-Dot não dá pontos sem nós (desculpem pela piada), cada música serve em função de tornar tudo mais coeso. Ao final de "Vibe", toca o áudio de um amigo seu que pede para que ele faça rimas em seu carro e então a absurda produção de Hitboy dá início a "Backseat Freestyle", uma reinterpretação de si mesmo, rimando no banco de trás de um carro sobre coisas que adolescentes daquele meio acreditam e idolatram.
A narrativa principal toma forma após isso. A pressão dos amigos para cometer crimes é contada na também carregada "The Art of Peer Pressure", que antecede um dos melhores momentos do álbum, a irônica "Money Trees", onde Kendrick resume todos os acontecimentos de antes e depois da história contada a cada linha de forma tão subjetiva que é preciso muita atenção para pegar todas as pontas soltas. Seu jogo de palavras aqui é genial, e sua performance é calculadamente relaxada, uma música sobre tentações que figurativamente fala que árvores de dinheiro são o melhor lugar para se pegar uma sombra, e ainda conta com excelentes participações de Anna Wise e sua voz angelical e Jay Rock, que continuaria a música futuramente em um trabalho próprio. Talvez a naturalidade seja o mais essencial para que o conceito realmente funcione sem ficar forçado, e ele se abusa disso na subsequente "Poetic Justice", onde vemos ele e Drake anos antes de se tornarem os dois maiores Rappers do mundo, em uma simples dedicatória de amor à Sherane. Justiça poética colocada em forma de música.
Talvez nenhum combo de canções exemplifique melhor o contexto do álbum do que seu título dividido. Em "good kid" ele conta a história da boa criança que sonha em sair do gueto, mas é prejudicada pelos paradigmas raciais em nossa sociedade (prestar atenção redobrada ao último verso). A faixa tem um tom psicodélico, que lembra os primeiros trabalhos do Outkast, com uma embriaguez regada a Jazz que amplifica os conceitos mostrados sobre um flow controlado de Kendrick, um trabalho excepcional de Pharrell na produção. "m.A.A.d city" é a própria caracterização do meio onde ele cresceu, e sua produção insana, caótica, encaixa perfeitamente na performance energética que até hoje levanta o público cada vez que toca nos shows. Na metade, a faixa troca a insanidade por uma batida opulenta, urbana, que lembra muito o Hip-Hop dos anos 90, mas não deixa de ser futurista . Aqui é onde seu flow está no mais alto nível, e um dos momentos mais marcantes de sua carreira.
O ato final, podemos assim dizer, conta com uma de suas músicas mais conhecidas, a unilateral "Swimming Pools (Drank)", que estranhamente também é a mais universal de todo o álbum. Problemas com o álcool nunca pareceram tão bem retratados, e por mais estranho que seja ver um jovem rapper o repudiando, a estética e sua performance espetacular tornam ela um de seus trabalhos mais interessantes. Ele retorna ao seu flow controlado, narrativo e pesaroso aqui, após a montanha russa de emoções que o álbum se torna em seu meio. Na seminal "Sing About Me, I'm Dying of Thirst", uma história inteira é contada em 12 poéticos e emotivos minutos. "Real" não seria nada atraente não fosse Anna Wise novamente, mas sua construção foi feita para ser assim, Kendrick fala sobre se amar em meio a todo aquele mundo, e sua falta de expressão chega a ser poética.
Construir um álbum tão conceitual tão dicotomicamente, pairando entre o direto e o subjetivo a cada troca de canção é um trabalho difícil, e que requer muito esforço de seus ouvintes para que seu valor real seja realmente encontrado. As habilidades de Kendrick ainda não estavam no auge, seu flow ainda estava um pouco quebrado, e suas rimas e performances veriam saltos de qualidade em seu próximo trabalho, mas são as imperfeições que fazem seu conto praticamente perfeito.
Curiosamente, um de seus mentores, Dr.Dre traz o único verso destoante, justamente no fechamento. De acordo com o próprio Kendrick, seus versos foram escritos no dia em que ele encontrou Dre pela primeira vez, e a música foi gravada na primeira vez que entraram no estúdio juntos. Ela foi colocada ao final com esse propósito, ali terminava "good kid, m.A.A.d city", e começava sua nova jornada. "good kid, m.A.A.d city" é um dos melhores álbuns do nosso tempo.