Crítica | Kendrick Lamar - To Pimp a Butterfly

álbum disponível no fim do post

O primeiro trabalho de Kendrick Lamar após o marco que foi "Good Kid Maad City" foi um dos álbuns de Rap mais esperados da memória recente. Depois de ser duramente esnobado no Grammy, perdendo tudo para Macklemore e seu oportunístico álbum "The Heist", muitos pensaram que ele voltaria atacando ele e o mundo, mas Macklemore não é nada na real luta de Kendrick. Ele está lutando por razões maiores e mais importantes aqui, em um álbum que é um testamento do tempo duro em que vivemos, uma lição de história e um olhar próximo e emocional na jornada de seu criador. 

Aqui ele saiu de Compton, e não está mais narrando histórias do lugar onde cresceu, sobre pessoas que tem no "Thrift Shop" um de seus principais meios de conseguir suas coisas, não como algo para dizer que são legais. Ele agora é uma estrela, um dos rappers mais reconhecidos do planeta e parece estar com sentimentos divididos sobre isso, desde agradecimento à desespero. Agora a América é o seu chão, e durante toda a magnitude de "To Pimp a Butterfly" ele mostra sua vida e a vida de praticamente todos os negros nos Estados Unidos, enquanto ainda as relaciona às suas raízes mais profundas.

Diferente da crua realidade de "Good Kid", que apostava em batidas atmosféricas e em um sentimento urbano geral, aliviado por influências tropicais e electro no meio, TPAB segue uma estrutura diferente, mais poeticamente caótica. O soul não é o centro da música, e sim o jazz, e só poderia ser, é o gênero que melhor representa o estado de mente que Kendrick estava. Diversas vezes ele está narrando e contando histórias, ou contextualizando seus conceitos nelas, mas a persona principal parece estar sempre contemplando e pensando, meditando sobre cada palavra. É o gênero clássico dos Estados Unidos, originado da cultura negra, o acompanhamento essencial para o conceito que Kendrick trabalha no álbum.

A cada momento o baixo monstruoso de Thundercat ou os trompetes alteradores de escala de Kamasi Washington aparecem, junto ao teclado ditador de tom de Robert Glasper, o sax de Terrace Martin, e trabalhos da carreira de muitos de seus produtores. Com todos esses elementos são criadas verdadeiras explorações musicais, que se misturam com as batidas incessantes e imponentes. Já na primeira faixa, "Wesley's Theory", essa musicalidade rica é mostrada em uma música tão completa que vale por metade dos álbuns lançados em 2015.    

Em seus conceitos, TPAB conta duas histórias. Uma é a visível, um poema que Kendrick constrói ao fim e começo de muitas faixas, falando sobre como ele quase caiu frente aos males de uma "garota" chamada Lucy. A outra é mais subjetiva e só encontra forma no último momento, na monumental "Mortal Man", onde ele se coloca lado a lado com seus ídolos, em um dos finais mais chocantes da história da música. E ambas histórias estão genialmente imersas em suas letras profundas e cheias de significados. Diferentemente de "Good Kid" as faixas não possuem uma ordem cronológica, mas estão intimamente conectadas sonora e conceitualmente. 

Liricamente ele está em outro nível, um que vai além de rixas de rap, ostentação ou status, não que ele não goste dessas coisas. No brilhante single "King Kunta" ele ataca rappers que usam ghostwritters, enquanto fala sobre sua subida ao trono. Seria uma mera música sobre se aclamar o melhor rapper, não fosse por como ele trata as pessoas que tentam derrubá-lo como se estivessem cortando suas pernas (google King Kunta). Essas associações são comuns, antes disso, em "For Free", ele entrega um freestyle sobre uma produção de puro Jazz, e enquanto ele parece estar apenas falando sobre uma mulher que pensa que seu ***** é de graça, ele fortemente critica a forma como pessoas negras são vistas pela sociedade. Ele consegue alternar muito bem entre letras realistas, diretas e metafóricas, as vezes dentro de uma mesma canção, mas logo se percebe que talvez a principal qualidade aqui seja na verdade a entrega, e o tom confiante do álbum praticamente desaparece após seu triunfante começo.

What money got to do with it? When I don't know the full definition of a rap image? I'm trapped inside the ghetto and I ain't proud to admit it, institutionalized, I keep running back for a visit

Ele larga com uma voz claustrofóbica, antes da cadenciada e ambiental batida de"Institutionalized", onde ele então rima com uma voz leve e carinhosa, sobre como a indústria do Rap pode ser enganosa, enquanto o refrão de Bilal divaga sobre velhas lições de mãe, com um maravilhoso sax se extinguindo no fundo. Snoop Dogg aparece aqui (um dos poucos rappers), e ajuda imensamente na nostalgia que a faixa provoca. Logo após, a dançante "These Walls" tem em significados figurados sua arma mais forte, onde ele descreve diversas coisas que ocorrem dentro de um quarto, desde amor à interesse, enquanto encaixa perfeitamente seu flow com a produção que faz seus ouvidos derreterem a cada momento. Mas não há mais espaço para tranquilidade, e a faixa termina da forma mais realista possível, fazendo toda sua leveza e construção imagética irem embora quando ele traz a mesma voz claustrofóbica de sua predecessora.

As mudanças repentinas são sempre gratas e impressionantes surpresas, mas seus picos de emoção ainda são o auge do álbum, e quando suas habilidades ficam mais evidentes. Ele fala para si mesmo que tudo vai estar bem em "Alright", logo após a chocante e embriagada performance da pesada "u", uma antítese do primeiro single, "I". "Alright" é um de seus melhores singles, onde ele acha em Deus um jeito de acreditar que as coisas realmente vão melhorar, com um senso de ironia que é tão triste como a faixa é otimista, graças à produção destacada de Pharrell. A frase "We Gon Be Alright" se tornou um dos maiores marcos nos protestos da Black Lives Matter. Já em "U", ele confronta a si mesmo fortemente sobre tudo que acredita ser sua culpa, a fucking failure ele alega ser. Pode mudar o mundo, mas não Compton, e isso o destrói por dentro, e sua entrega é tão poderosa e agoniante que ele deveria ganhar prêmios também por sua atuação. E então a primeira metade do álbum acaba, logo quando "Alright" termina e "For Sale" começa, e Kendrick nos apresenta a Lucy. Se foi feita para ser um ponto de divisão não é claro, mas o objetivo das faixas muda depois dela.

Elas param de ser tão estilosas, tem muito pouco do flow intenso de antes, e raramente suas emoções falam mais alto que seus pensamentos. Chamar essas canções de fillers, ou faixas de álbum seria um desrespeito, pois tudo em TPAB funciona para o bem de todo o produto. Na maioria delas ele nos coloca ainda mais dentro de seu mundo, se utilizando de diversos aspectos menos comentados sobre a vida negra na América que continuam a enriquecer o álbum, e por vezes parecem uma carta para si mesmo. A volta para casa depois da fama é um dos temas mais recorrentes e que mais parecem desestabilizá-lo, apesar de sua abordagem mudar fortemente cada vez que o trata. Esse tema é muito trabalhado em "Momma", que tem seu valor na história contada, não em seu flow ou rimas. As letras são as mais próximas de uma narrativa direta, onde ele simplesmente percebe como sua vida mudou enquanto quase se esquece de como era antes. Não há entrega poderosa, é quase como uma leitura, mas pelo menos é uma linda descoberta.  Em "Hood Politics" ele contrasta esse mesmo conteúdo com uma voz mais alta, talvez para lembrar de si mais novo de quando Compton ainda era seu mundo.

Kendrick se utiliza muito bem de histórias pessoais para conectar ainda mais seu público a seu trabalho. A excepcional "How Much A Dollar Cost" é a peça de Jazz mais forte, com uma atmosfera tão imersiva que podemos visualizar a pertinente história que ele nos conta e nos perguntar o quanto daquilo seria verdade, sempre com um senso crescente de desespero em sua voz. Já "Complexion" é uma válida observação sobre o amor multi-racial, onde ele está mais do que determinado em perdoar. O verso de Rapsody não mantém o mesmo nível dos de Kendrick, mas oferece ideias interessantes e não é um verdadeiro problema. "You Ain't Gotta Lie" é um Funk leve e fluído, e uma lembrança sobre um famoso estigma que afeta jovens crescendo em lugares ruins, onde seu flow é tão tranquilo que não parece nada a não ser um conselho sábio. Quantas vezes você já mentiu para parecer mais legal? Você não precisa disso, ele fala talvez para si mesmo no passado.

Muito raramente ele parece brabo com alguma coisa, o sentimento de revolta é presente, mas o ódio é mostrado poucas vezes aqui. Na melhor música do álbum, "The Blacker The Berry", ele diz que é tão negro como a lua, enquanto ataca a todos que querem terminar sua cultura, além de confrontar a si mesmo sobre tudo. É o único momento onde sua raiva fala mais alto - exceto pelo final -, e é extremamente gratificante. A atmosfera da faixa é pesada, os tambores são altos e a presença do jamaicano Assassin ("Yeezus" de Kanye West também se beneficia dele) aumenta ainda mais o senso de caos. É um dos mais valiosos registros líricos do nosso tempo, uma música sobre o ódio acumulado sobre a comunidade negra, e como ela atinge a todos. Ao final ele apenas conclui "So why did I weep when Trayvon Martin was in the street when gang banging make me kill a nigga blacker than me? Hypocrite!".

Assim como "King Kunta", "I", que já havia sido uma das melhores músicas de 2014, se beneficiou de todo o contexto do álbum. Sua definitiva carta para a esperança, um abraço ao amor, que representa suas verdadeiras emoções sobre tudo que foi divagado aqui. Talvez este seja o único "problema" de TPAB, suas faixas funcionam melhores juntas, como pequenos pedaços do grande produto que é o álbum. Enquanto alguns de seus singles possam ser aproveitados em uma perspectiva diária, e "I" é um deles, seu total valor pode apenas ser obtido quando você estiver preparado para imergir em tudo mais uma vez. Se isso é ruim, depende de você.

"To Pimp a Butterfly" é sobre muitas coisas. Fazer o melhor com o que se tem ao seu redor é uma delas, mas também é sobre as consequências disso. Musicalmente Kendrick faz o melhor de cada momento, enquanto tenta se superar e sentar no topo com todos os grandes nomes que o inspiram, fazendo ótimo proveito do excelente trabalho que ele criou com seus colaboradores. Suas dúvidas são algumas das mais latentes já vistas em um álbum, e sua motivação é tão pura e honesta que podemos apenas torcer por ele. O melhor álbum de 2015, e um dos favoritos a melhor projeto musical da década, "To Pimp a Butterfly" é uma obra prima de um dos artistas mais talentosos de todos os tempos, no auge de seus poderes. O quão grande ele pode se tornar, talvez ainda estejamos para ver. Aqui, torcer por Kendrick, é torcer pelo mundo.

10

Anterior
Anterior

Crítica | The Weeknd - Starboy

Próximo
Próximo

Crítica | Kendrick Lamar - good kid, m.A.A.d city