Crítica | Malcolm & Marie

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É triste viver em um mundo onde filmes convencionais como “Os Sete de Chicago” e “Nomadland” (apesar deste se julgar experimental) são os favoritos para todos os prêmios da temporada, e algo menor, mas definitivamente mais valioso como este “Malcolm & Marie” receber as críticas mistas que vem recebendo.

Estrelado (apenas) pela sensação Zendaya e pelo cada vez mais requisitado John David Washington (filho de Denzel), o longa dirigido pelo criador de “Euphoria”, Sam Levinson, entra para uma já extensa família de dramas minimalistas que envolvem uma relação em ruínas e espaços limitados ou fechados. Entre eles, os ótimos “Namorados Para Sempre”, “Histórias de Um Casamento” e “Um Limite Entre Nós”, os já clássicos “Kramer vs. Kramer”, “Cenas de Um Casamento” e aquele que talvez seja a maior inspiração para todos estes, e um dos meus favoritos, “Desprezo”, de Godard. Tudo isso enquanto ecoa Scorsese e o cinema europeu, em estilo, e um senso de ironia que faria David Fincher e seu “Garota Exemplar” (sua própria versão deste sub-gênero) se orgulharem.

Rodado inteiramente durante a pandemia, “Malcolm & Marie” é um exercício de cinema, com um orçamento (dois milhões e meio de Bidenios) enxuto para o cacife de suas estrelas e que procura, em cada um de seus 106 minutos, se fazer valer.

Fotografado em preto e branco por Marcell Rév, é possível questionar a razão disso do ponto de vista narrativo: de maneira alguma o filme alude para o passado, sendo que suas discussões, apesar de atemporais, claramente são calcadas no atual momento que vivemos onde, por incrível que pareça, a indústria parece finalmente se abrir para cineastas negros. Ver Malcolm sendo comparado à nomes como Spike Lee e Barry Jenkins soa tanto como algo natural como a piada de mal gosto que o filme oferece, quando este pergunta à crítica que fez tal comparação se ele não poderia se assemelhar a algum diretor branco. E depois de pensar muito, digo que não sei se a decisão (de filmar em preto e branco) funciona artisticamente, mas ao também apostar em uma granulação maior, Rév pinta um retrato elegante, mas também frio do mundo que aqueles dois habitam no momento, algo que contrasta de maneira irreverente e provocativa com a trilha sonora de Labrinth, que surge no rádio da casa e mistura gêneros e épocas com naturalidade, oferecendo o fundo perfeito para a relação conturbada de Malcolm e Marie.

Já Levinson, cujo trabalho não conheço, sucede em transformar a casa no terceiro integrante daquela relação, sendo que seus muitos cômodos, por vezes cortados por mesas, camas e banheiras, requerem que Malcolm e Marie deem voltas para se encontrar ou se evitar fisicamente. A dupla de atores, inclusive, é fundamental nesse processo, pois parece estar perfeitamente acostumada com o ambiente, o utilizando em sua totalidade desde a forma como ligam um rádio, cozinham um macarrão ou até mesmo tomam banho. Recheando de cortes que constatam o humor de sua relação, a edição de Julio C. Perez IV alterna para ela deitada horizontalmente aqui, para ele sentado verticalmente aqui, construindo uma rima quase geométrica com o local. Além disso, o design de produção acerta em cheio ao ter uma casa inteiramente envidraçada, pois apesar de óbvio, é sempre um elemento divertido quando percebemos que as vidraças jamais escondem tudo que vivem ali dentro, e dentro de si mesmos. E um destaque deve ser dado às belas tomadas nos exteriores da propriedade (estes, sim, remetendo aos cenários falsos de filmes antigos), que Levinson escolhe por filmar de longe, pois parece que vemos apenas o que ocorre ali dentro, tornando a casa em, literalmente, um personagem crucial do filme. O que, novamente, soa como uma sádica ironia pelo fato de ela ser um “presente” da produtora para qual Malcolm trabalha.

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Porém se algo falta à “Malcolm e Marie” é a consistência em sua abordagem que, por mais que aliviada pelas performances (das quais falo mais abaixo), deve deixar muitos se perguntando, ou até julgando o longa de pedante, presunçoso ou indeciso, algo que não concordo, mas entendo quem for pensar assim. Pois se as vezes parecemos estar assistindo a uma verdadeira sátira com traços teatrais, recheada de monólogos longos e ensaiados demais para serem verídicos, em outras Levinson parece se aproximar do próprio cinema francês e sua implacável crueza. Esta última, evidenciada pela magistral cena que deveria ser a final, onde o Jazz sobe e vemos os dois separados por espelhos, paredes e portas entre-abertas, sem falar nada, mas nos fazendo sentir todo o arrependimento de frases ditas, e medo daquelas que ainda não foram.

Inclusive, ao discutir sobre os temas propostos e tratados no filme, sinto como se fossem um prato cheio para qualquer cinéfilo. Em um misto de discussão amorosa, profissional e intelectual, brilhantemente correlacionando todos, os dois passeiam pela natureza do artista, da crítica e do público, e como, por vezes, todos parecem falar línguas diferentes - e as vezes falamos, mesmo -, navegam pelo passado de suas vidas pessoais, resgatando memórias que deveriam ficar enterradas e, é claro, constatam as diferenças raciais que inevitavelmente afetam a maneira como são vistos e veem a si próprios. Em um momento fascinante, Malcolm sente um prazer masoquista ao descobrir que Marie o enganou com uma atuação e que uma decisão relacionada a isso deve assombrá-lo para sempre, ao passo que Marie alterna momentos de uma maturidade advinda de uma vida difícil, com a carência e inseguranças da menina que é (Zendaya parece ter 18 anos, mesmo que tenha 24).

E toda essa complexidade não seria possível sem as performances apaixonadas de John David Washington (que volta a brilhar depois de ser prejudicado pelo roteiro tenebroso de “Tenet”) e Zendaya (da qual nunca fui fã, mas me peguei impressionado aqui). Construindo uma química que vai e vem assim como seu temperamento e aparente humor, os dois não necessariamente seriam meus favoritos para a temporada de premiação, mas, de novo, acredito que a inconstância do tom do texto vá prejudicá-los consideravelmente. Ao menos para mim, é comovente a forma como os dois conseguem dar voltas e voltas para não dizer algo que é fácil constatar, mas que todos tendemos evitar a dizer, pois claramente Malcolm e Marie querem apenas o mesmo que todos nós: aprovação, adoração, afeto, consideração.

Com muito a dizer e nem sempre sabendo a melhor forma de o fazê-lo, “Malcolm & Marie” é o tipo de filme que não me importo de ver “fracassar” desde que o faça da maneira apaixonante como este faz.

8

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