Crítica | Doutor Sono
Qualquer pessoa que entre na sessão de “Doutor Sono” esperando assistir à algo no nível de “O Iluminado” está fadado à decepção.
Isto não é, de forma alguma, um indicativo de que esta sequência, tanto para o filme de Stanley Kubrick (de 1980) como para o livro de Stephen King (de 1977) - que não aprovou as mudanças feitas pelo diretor na versão que acabou se tornando um dos maiores clássicos do Terror e, por isso, decidiu produzir uma série para a televisão baseada em sua obra, em 1997 -, não deve ser valorizada. Acima de tudo, este filme de Mike Flanagan, apesar de homenagear as obras que o antecederam, faz questão de se sustentar por conta própria.
Consegue?
Acompanhando a vida de Dan Torrance 31 anos após os acontecimentos de “O Iluminado”, somos levados de volta àquele mundo logo no começo da projeção, aliás, antes do começo, quando o icônico tema musical que marca as primeiras cenas do projeto de Kubrick surge imponente antes de vermos qualquer coisa na tela. Flanagan, querendo equilibrar as preferências dos fãs tanto da adaptação, quanto do livro, decidiu recriar algumas das cenas do filme original e as emprega logo no começo da projeção e, por mais que haja semelhança na caracterização dos atores que interpretam o jovem Danny e sua mãe Wendy, se torna quase incômodo vermos regravações tão similares com pessoas diferentes. O diretor, no entanto, prova mais uma vez que é um aficionado do gênero e se diverte - e impressiona - ao evocar o estilo de Kubrick nestas e em outras tomadas.
Flanagan sabe perfeitamente a hora de aproximar a câmera do rosto de seus personagens, e conduz suas cenas sobrenaturais com um quê de fantasia, utilizando os efeitos visuais de forma bem dosada em momentos necessários, criando composições naturais e, por isso, ainda mais assustadoras. Se mostrando cada vez mais eficaz em criar tensão, ele consegue tirar o fôlego do espectador logo no primeiro ato (acredito que a estrutura dos cinco atos possa ser aplicada ao analisar “Doutor Sono”, mais sobre isso abaixo), mesmo este sendo uma espécie de reedição de coisas que já havíamos visto na versão de 1980. E por mais que o longa pareça passar boa parte da primeira hora apenas mostrando o dia a dia de Dan e dos novos personagens sem, propriamente, avançar com a narrativa, considero esta uma decisão instigante e enriquecedora do diretor, que também roteirizou o projeto, justamente por podermos criar vínculos emocionais e entender a lógica por trás das relações entre os três núcleos que comandam a convencional, mas inventiva história de Stephen King.
Infelizmente, consegui assistir o filme apenas na cabine de imprensa até agora e, assim como seu antecessor, é um longa que se beneficiará com futuras revisitas, então peço, desde já, desculpas e aviso que, possivelmente, farei uma análise mais complexa assim que assistir-lo novamente, possivelmente confirmando se a estrutura de cinco atos se aplica ou não. Digo isso, pois há algo de especial na forma como direção, edição, trilha sonora e design de produção são combinados na maioria das cenas, com planos simples, como Dan dirigindo um carro, tomando proporções gigantescas. Em certo momento, a música é reduzida à isoladas batidas que quase emulam um coração, tornando a locação em particular em um lugar vivo. Mas sem um olhar mais atento a detalhes, que o filme quase não permite à primeira vista por estimular sua atenção com a narrativa, se torna quase impossível compreender por completo a complexidade do trabalho de Flanagan.
É possível que alguns reclamem do excesso de fan service, mas considero seu uso justificável no início por nos levar de volta àquele universo e, no final, pois o filme se constrói pacientemente como um trabalho único para, então, agraciar os fãs. A longa duração (duas horas e trinta minutos), inclusive, deve ser outra reclamação constante, mas graças ao ritmo envolvente e o investimento que o roteiro dá à seus personagens, quase não senti o tempo passar. Já uma certa sequência de ação, que faz a transição para o último ato, pareceu uma solução econômica e mundana demais (assim como a retratação visual do próprio “brilho”) para uma história que, até então, puxava para o lado fantástico de maneira tão eficaz. Pois se em uma cena vemos uma personagem voando pela órbita da Terra, ver confrontos solucionados com armas soa muito menos interessante. Aponto, também, para uma certa incerteza acerca das capacidades dos “iluminados”, que parecem se esticar à um nível quase mutante - ou bruxo -, quando comparados com as nuances mais sutis do filme de Kubrick.
E aí entra um dos pontos que deve convergir a maioria dos espectadores: afinal, “Doutor Sono” dá medo?
Para a geração acostumada com jumpscares… talvez. Flanagan não deixa de utilizar a técnica e ao menos um me fez saltar da cadeira, mas estes estão bem espalhados. Já para aqueles que apreciam o terror presente na simples sugestão de que algo não está certo, no simbolismo e em possíveis significados escondidos, é bem possível que o longa se mostre mais efetivo, mesmo que, respondendo à outra pergunta óbvia que irá surgir, não seja tão aterrorizante como seu antecessor. Porém, o que mais nos faz sentir algo próximo de medo de verdade em um filme é nossa empatia para com os personagens que estamos assistindo e, nesse ponto, “Doutor Sono” não deixa a desejar.
Interpretado com um olhar de tormenta, cansaço e bondade (esta última essencial na composição do personagem) por Ewan McGregor, Dan Torrance se mostra um herói fácil de se torcer, pois, apesar de estar longe de ser um ser humano perfeito, seu passado obscuro e sua determinação em ajudar aos outros, aliados à sinceridade que passa, o transformam em um personagem real e com valores e motivações louváveis. Auxiliado por um elenco de apoio sólido e operante, suas interações com Carl Lumbly - que evoca a voz do Dick Hallorann de Scatman Crothers com assustadora semelhança - e Cliff Curtis são pontos de leveza necessários e reforçam sua humanidade.
Mas o show pertence às novas adições, pois Rebecca Ferguson figura como uma das vilãs mais ameaçadoras do ano na pele de Rose, o Chapéu. Sexy, sombria e misteriosa, a atriz é crucial em dar camadas à sua personagem e, apesar de ser difícil de concordar com suas ações, é possível entender sua motivação por trás delas. Seus companheiros de equipe também estão sólidos, mesmo que tenhamos pouco, ou nenhum, desenvolvimento de suas personalidades. Ainda assim, talvez o destaque individual do longa esteja nas mãos da jovem Kyliegh Curran, que consegue sugerir inocência e determinação - e uma pitada inquietante de sadismo - apenas com o olhar, e percebam como a atriz muda a linguagem corporal e até a própria voz quando é “possuída” por outra pessoa.
Com um final evocativo, mas consideravelmente menos ambíguo e inquietante do que poderia ser, “Doutor Sono” é, sim, inferior à “O Iluminado”, mas a comparação, apesar de necessária e inevitável, é injusta. O filme de Kubrick teve décadas para ser absorvido da melhor forma, e este de Flanagan, da mesma forma, necessita ser visto mais de uma vez. Alguns temas, inclusive, acabam ficando perdidos em meio a todo o desenvolvimento da narrativa, pois “Doutor Sono” é, por trás do terror e da fantasia, uma história sobre perda, depressão e luto, além de trazer de volta a auto destruição e loucura que tomaram conta de Jack Torrance e parecem ser traços presentes no coração da maioria dos seres humanos.