Crítica | A Vida Invisível

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O Brasil deveria ter escolhido “Bacurau” como seu representante no Oscar.

Mas espere! Não assuma nada de forma precipitada, pois se sei qualquer coisa sobre o Oscar de Melhor Filme Internacional (e digo que não é muito perto de outros especialistas da cerimônia), é que a Academia gosta de premiar filmes genuinamente estrangeiros, com temáticas, visuais e histórias que, na maioria das vezes, não poderiam ser executadas com perfeição ao simplesmente alternar sua locação para os Estados Unidos. Foi o caso de “Roma”, “A Separação”, “Uma Mulher fantástica” entre tantos outros vencedores recentes. Nesse caso, não teria como vencer do filme de Kleber Mendonça, que exala brasilidade em toda sua concepção. Dito isso, agora vai a principal - e última - afirmação comparativa entre ambas as obras:

“A Vida Invisível” é melhor que “Bacurau”.

Situado no Rio de Janeiro, na década de 50, o longa de Karim Ainouz conta a história de duas irmãs que, após se separarem por motivos diversos, dedicam a vida para se reencontrar em uma era onde o patriarcado, o machismo e a desigualdade social se mostravam obstáculos maiores do que a distância física e emocional a que foram obrigadas a compartilhar.

Iniciando a projeção com uma sequência em meio aos morros antes consideravelmente mais ricos em flora do Rio de Janeiro, Ainouz se mostra inspirado e competente ao criar um paralelo claro com a história que acompanharíamos a seguir. Na sequência em questão, as irmãs Eurídice (Carol Duarte) e Guida Gusmão (Julia Stockler) estão explorando a mata quando a última decide se afastar e some de vista. É uma cena aparentemente desconexa com o resto do filme - mesmo que engane aqueles que entrarem sem saber do que se trata por fazê-los pensar que aquele desaparecimento seria o tema central da história -, mas que simbolicamente é uma síntese da natureza de cada uma das irmãs e dos empecilhos que encontrariam em seu caminho.

Inicialmente, Eurídice se mostra claramente mais dependente de sua irmã do que o contrário, afinal, é Guida quem parte em busca de novas aventuras ao fugir com o grego Yorgos (seria Ainouz fã de Yorgos Lanthimos?), e perceba como Duarte é geralmente enquadrada em planos fechados, quase claustrofóbicos, que ao longo da projeção substituem a mata densa que a cercava na sequência inicial por cômodos apertados, tanto na casa dos pais como na que divide com o marido. Técnica que enfatiza não apenas a personalidade contida da jovem, mas como a própria está mais encurralada e presa à seu papel na sociedade do que a irmã, que não consegue se contentar com os costumes - já naquela época - retrógrados impostos pelo pai e aceitos, sem a possibilidade de discussão, pela mãe. Guida é vista em movimentos mais fluídos de câmera e em planos ligeiramente mais abertos e contínuos, refletindo seu espírito desprendido.

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Ainouz é eficaz ao adicionar estas e outras nuances com seu trabalho de câmeras, conduzindo a narrativa com um ritmo que, conforme se desenvolve, se mostra mais engajante e, ao mesmo tempo, frustrante - perceba como o silêncio é utilizado para reforçar essa sensação, quando personagens simplesmente escolhem por não responder nada -, por constatarmos que aquela história não era sobre um possível final feliz, mas sobre o caminho traiçoeiro que suas personagens tinham de percorrer. A edição de Heike Parplies comete alguns deslizes em cortes abruptos, e o próprio diretor mostra uma inconsistência na forma como, por exemplo, enquadra Eurídice tocando seu piano, sendo que vemos a atriz realmente interagindo com o instrumento apenas na terceira ou quarta tomada, o que nos impede de suspender a descrença de que, provavelmente, o som advindo da cena fora adicionado na pós produção. Mas a dupla se mostra quase brilhante em um belo corte onde a música que a jovem toca se torna a trilha para a próxima cena, em um raccord sonoro genuinamente bonito.

O design de som, diga-se, faz parte crucial no desenvolvimento de ambas as personagens, sendo que a vida de Eurídice é constantemente acompanhada apenas pela trilha sonora - linda, à base de piano -, ao passo que a de Guida conta com barulhos que apenas as classes sociais mais baixas tem de ouvir - carros, burburinhos misturados ao pagode, o som da rua. O que me leva a questionar fortemente o fato de duas cenas terem o som consideravelmente abafado na conversa de seus personagens, em um longa que usa seu aspecto sonoro de forma tão excelente. Já a cinematografia é uniformemente elogiável, apostando em tons lavados e sem vida durante boa parte da projeção, refletindo o estado de espírito de suas personagens, e se apoiando em uma bela tríade de cores primárias nas cenas finais.

Mas apesar de ser tecnicamente exemplar, são os temas imersos em sua narrativa que tornam “A Vida Invisível” um filme exemplar. Ao analisar a dinâmica da família no primeiro ato da projeção, fica claro que o longa é menos sobre a história envolvendo as irmãs e mais sobre o papel da mulher na sociedade brasileira e, ao acompanharmos a trajetória de ambas as jovens, percebemos os efeitos da repreensão, repressão e limitação causadas pelo machismo estrutural. A própria forma como ambas se descobrem sexualmente é essencial para o entendimento de sua relação, sendo que Guida se mostra visivelmente mais adiantada, enquanto a irmã parece achar prazer na música e na família e pouco, ou nenhum interesse real, no sexo masculino. Porém, como uma piada de mal gosto do destino, é Guida quem acaba solitária e Eurídice que é delegada a se casar com um homem que passa a apreciar apenas com o tempo e caso você se pergunte o porque de ela simplesmente não pedir o divórcio, preste atenção no que ocorre com a irmã ao tentar viajar a lazer com o filho, mas é barrada por não ter a autorização do pai (que não quis saber da criança), e perceba como aquelas mulheres vivem em um mundo que, novamente, as repreende, reprime e limita.

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A partir daí, é necessário entender como a história em si influencia na exploração de seus temas, pois se como comentário político e social o filme é impactante e provocativo, como um drama envolvendo duas pessoas que se procuram em lugares distantes sem saber que estão à bairros uma da outra, “A Vida Invisível” se prova tocante e, profundamente, angustiante. Muito se deve às performances do elenco principal, encabeçado por uma escalação perfeita de Carol Duarte - que desponta como uma das melhores atrizes de sua geração -, sendo que a mesma atingiu reconhecimento ao interpretar uma jovem transexual, o que pode gerar uma ligeira dúvida na mente no espectador ao assistir suas primeiras, e desconfortáveis, experiências sexuais. O elenco de apoio está bem, mesmo que propositalmente não tenha muito o que fazer, com sua suma importância sendo resumida ao papel que todos tem na vida de Eurídice. Gregorio Duvivier pode destoar com sua personalidade cômica, mas funciona razoavelmente (suas cenas sexuais se tornam menos desconfortáveis por conta de seu histórico), enquanto Antônio Fonseca e Flávia Gusmão estão operantes como os pais de Eurídice e Guida.

Mas quem rouba o filme é Julia Stockler, não apenas por Guida ser uma personagem, por si só, mais carismática, mas por refletir uma realidade ainda mais bruta do que aquela protagonizada pela irmã. Percebam o misto de inquietação e conformidade que ela apresenta ao fazer atitudes simples como se sentar na varanda, ou fumar um cigarro, e como a sabedoria da vida de mãe contrasta com a imprudência da jovem que antes queria ganhar o mundo. Mais ainda, no único momento onde contracena com Fernanda Montenegro - que nos desmonta com pouquíssimos minutos em tela -, sofremos não apenas pela emoção da segunda, mas pelo desdém da primeira, ambos advindos de ações além da relação das personagens. E se justiça fosse feita, Bárbara Santos, que interpreta a divertida Filomena - personagem equivalente ao papel de Zélia (Maria Manoella) na vida de Eurídice -, deveria, também, ganhar o mundo com sua performance, e é dela a frase mais marcante, e dolorida, do filme.

Ao comentar sobre o fato de Guida dar a luz a um menino, ela diz: sorte a dele.

Apesar de não ser a escolha certa para nos representar na Academia, “A Vida Invisível” figura não apenas como o - possível - melhor filme brasileiro de 2019, mas como um dos melhores lançamentos que tive o prazer de assistir este ano. Acredito que não receberá o devido reconhecimento, em especial no Brasil, pois pior do que nosso acesso ao bom cinema, está o preconceito e machismo que torna nosso momento atual quase uma repetição de nossa dolorosa história.

E ver como ela afetou estas pessoas, torna nossa situação ainda mais preocupante.

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