Crítica | Joias Brutas
“Joias Brutas” talvez seja um advogado para o que há de bom na entrada do streamming na indústria cinematográfica, pois se trata de um filme que infelizmente teria dificuldades de ser lançado no cinema pelos estúdios atualmente.
Um filme autoral, que cria as próprias regras para, de alguma maneira, fazer uma reflexão pessimista da sociedade e do capitalismo. Além disso, aposta em um elenco que não figuraria em um cartaz de filme “de Oscar” muito bem, e principalmente em uma história revigorante e original.
Narrando a história de um joalheiro, que vende peças de luxo e possui um baixo senso moral, cabe ao público imergir nos sons e cores da sua vida que vai ladeira abaixo. Transitando entre o vício em apostas, agiotagem, problemas familiares e drogas, os irmãos Safdie dirigem com a intensidade que essas questões precisam para funcionar por duas horas e quinze. Recheado de pessimismo, joga com nossas expectativas morais e faz um personagem assistindo um jogo de basquete ser de tirar o fôlego e partindo do universo da indústria de joalherias em Nova Iorque tornando esse ambiente interessante e real. Constantemente aparecem filmes sem nada para falar que se escondem atrás de requinte técnico (oi, Coringa), mas esse não é o caso. Qual significado que podemos tirar de um joalheiro indo de mal a pior por mais de duas horas?
Uma trilha de ficção científica roda e a câmera vaga por um lugar desértico, na tela aparece que é uma mina na Etiópia. Os mineradores correm e fazem barulho, indicando que houve um acidente, um homem com a perna quebrada é carregado e aparece em meio a gritos, rodeado por outros homens. Em poucos segundos a câmera fecha em dois dos mineradores que não estão falando nada, eles saem escondidos, entram na mina e acham uma pedra com algumas gemas multicoloridas cravadas. A trilha então assume um tom quase transcendental (alguma semelhança com o célebre trabalho de Vangelis para “Blade Runner”) enquanto a câmera imerge para dentro da gema, num mar de cores que se mostram galáxias. O nome do filme entra em tela com uma estética retrô que orna com a estética e a trilha, as estrelas se transformam em cores avermelhadas e a tela nos mostra um intestino humano. A viagem de mais ou menos 1 minuto acaba com a câmera se afastando de uma tela.
Estávamos vendo a colonoscopia de Howard Ratner, nosso protagonista.
Isso é na marca de cinco minutos, metade da introdução que só vai acabar um pouco depois dos 10 minutos de filme, mas esses primeiros momentos em que não há nenhuma fala, nenhum personagem que participará da história. E mesmo assim, define o tom e algumas linhas narrativas que vão ser usadas no restante do filme. Essa primeira cena é uma aula de abertura porque seus sons e suas cores peculiares são parte central da trama e seu final saindo das entranhas do protagonista descrevem a história de “Joias Brutas”, confusão, barulho e a imersão visceral na vida de Howard que o roteiro propõe.
O que segue é basicamente o que vamos ter no filme inteiro, a câmera acompanhando Howard enquanto ele anda da sua loja, à loja de penhores, ao restaurante em que ele faz apostas, enquanto é cobrado por dívidas e xinga todos a sua volta na maior parte do tempo. O protagonista é uma figura no mínimo desagradável, no começo do filme um empregado reclama da maneira como é tratado, enquanto seu chefe analisa uma pedra sem prestar atenção em nada a sua volta, deixando o funcionário falando sozinho que por fim se demite sem arrancar nenhuma reação do chefe. Várias das cenas são incrivelmente barulhentas e o fato de não ter sido indicado ao Oscar nas categorias de som demonstra como é fraca a imaginação audiovisual em Hollywood. Pois em “Joias Brutas” constantemente somos pegos em ambientes pequenos com três ou quatro conversas acontecendo simultaneamente, mas de maneira que nada se perde.
Os jogos de cores são um ponto central que junto com a fotografia criam cenas intensas como aquela em que Howard está no carro com seus credores e posteriormente na janta de família com a leitura das 10 pragas. Outra cena chave, em todos os sentidos, é o estranhíssimo momento em que Howard observa sua namorada enquanto troca mensagens com ela. A diferença da iluminação azul no rosto do personagem em contraste com o amarelo cercando Julia ajudam a construir uma sensação incômoda apesar do que aparece na tela parecer um casal flertando é na verdade uma mulher sendo observada por seu companheiro escondido. Quando a tensão é quebrada e ele corre para abraçá-la a trilha entra alto, não é uma trilha exatamente romântica, mas urbana. E por fim, enquanto se beijam ele só fala das suas apostas. Afinal, ele é uma pessoa acima de tudo egocêntrica e esse aspecto é diversas vezes abordado na sua relação com sua ex-esposa e com sua namorada.
Essas relações mais ou menos complexas se apoiam em um elenco eficiente em que todos atores brilham e contribuem para a construção dramática, é importante ressaltar isso pois a escolha é um tanto singular. Pra tirar do caminho, deve se começar por Adam Sandler.
O comediante já em uma carreira consolidada tem nesse papel uma chance de demonstrar algumas capacidades que nas comédias que ele faz ficam em segundo plano. Em grande parte dos filmes ele interpreta o cara comum que só está tentando fazer a coisa certa e é cercado por situações inusitadas. Independente das opiniões sobre esse tipo de história, o fato de ele ter feito tantas vezes essa função o limitou de explorar outras possibilidades em tela, e certamente ele é um dos maiores ganhadores em “Joias Brutas”. Seu personagem é complexo, intenso, irritante, patético, duvidoso e, mesmo assim, no final do filme torcemos por ele se dar bem. O que Sandler imprime em Howard que talvez seja o seu trunfo é uma agência e até algo de resistência sobre o caos que reina em sua volta.
A outra grande surpresa é Julia Fox no papel da namorada (ou amante?) de Howard, Julia. Surpresa instantânea pois se trata de uma não-atriz, ou não profissional, Julia Fox é uma socialite e dominatrix de Manhattan e sem nenhuma dúvida o principal destaque de “Joias Brutas”, cena após cena ela traz algum elemento novo, seja sensualidade, romance, tristeza, ousadia ou inteligência para resolver os problemas seus e de Howard. E ainda no tópico de não-atores, Kevin Garnett interpretando Kevin Garnett traz uma urgência e veracidade que dificilmente algum outro atleta interpretando a si mesmo em um filme já conseguiu fazer parecido. Não surpreendem pois costumeiramente fazem grandes papéis Idina Menzel como Dinah, ex-esposa de Howard em processo de divórcio e Lakeith Stanfield como Demany, vendedor da joalheria responsável por intermediar a compra de Garnett.
Mas o que conta essa rede de informações e atuações e interpretações e obra técnica? Essa pergunta na verdade é o que apresenta a qualidade de “Joias Brutas”. Apesar de ter no seu centro um personagem egoísta e que mente uma vez atrás da outra na tela sem nenhum motivo mais ou menos nobre, não há moralismo na narrativa, todo o tempo questionamos o que sabemos sobre ele e na verdade sabemos muito pouco, na primeira cena quando ele diz para as pessoas que entram em sua loja para cobrar uma dívida que não tem nada, a gente acredita na hora. Logo em seguida ele aposta milhares de dólares em um jogo de basquete. Sucessivamente, Howard mente, desmente e mente de novo em tela, e cabe ao espectador acreditar ou não em alguma coisa ou nada. Isso significa que ele é uma pessoa condenável? Bom, eticamente sim; mas na ética de “Joias Brutas” ele é só mais um humano tentando sobreviver no sistema, isso é brilhantemente pontuado no diálogo entre ele e Garnett ao final do filme, sobre a exploração das pedras preciosas no continente africano. Mas o que Howard faz não é certo nem errado, porque nesse Universo não existe certo ou errado. Existe ter dinheiro ou não ter, vivo ou morto. Em momento algum Howard tem qualquer sentimento que não seja por ele mesmo, ele revela em determinado ponto que abandonou seu time de basquete depois que começou a apostar e compara as apostas que faz ao que faz o próprio jogador de basquete em quadra.