Cena em Detalhe | Capitão Fantástico
O radicalismo nunca é a melhor solução.
Essa é a mensagem que Ben Cash, personagem interpretado por Viggo Mortensen, custa a aceitar, mesmo que suas convicções ainda o façam acreditar que, ao contrariar o radicalismo cotidiano que todos vivemos sem nem ao menos perceber, estaria fazendo o melhor para seus filhos e para si mesmo.
Neste belíssimo filme de Matt Ross, Ben, sua esposa Leslie e seus seis filhos moram em uma área selvagem de Washington, vivendo sem tecnologia e à base de suas interações com a natureza. Ben e Leslie criaram seus filhos para serem crianças únicas, desde seus nomes inventados aos ensinamentos que os passam. Além de dominar as matérias básicas que todos temos apenas uma básica noção, eles são encorajados a pensar criticamente, à ver o mundo de forma menos capitalista, à não se abraçar à coisas materiais. São encorajados a ver o mundo da forma como seus pais, dotados de razão, acreditam ser o ideal.
Porém, a vida, aparentemente tranquila da família, é abalada quando Leslie é hospitalizada por uma crise de bipolaridade e decide tirar a própria vida. Sabendo que seu sogro quer dar a filha um enterro tradicional, Ben e seus filhos embarcam em uma viagem para comparecer ao funeral de Leslie que, em vida, deixou um testamento dizendo que desejava ser cremada e que suas cinzas fossem jogadas em um vaso sanitário.
É uma premissa esquisita e é difícil de, lendo, encontrar a beleza do desprendimento desta mulher, que julgava seu corpo algo vazio após a morte. A morte, inclusive, para ela e para Ben, não era motivo de tristeza e melancolia como as pessoas do mundo comum julgam ser, e sim uma fase natural da vida, que deveria ser celebrada com alegria justamente no momento em que acaba.
Afinal, se não valorizarmos o que vivemos, de que adianta viver?
No nosso próximo Cena em Detalhe, analisaremos uma das cenas mais lindas e tocantes do cinema nos últimos anos: a despedida de uma família para a pessoa mais importante de suas vidas.
Como havia dito antes, a premissa de “Capitão Fantástico” é consideravelmente esquisita. Para chegarmos a esta cena final, foi necessário que marido e filhos de Leslie a “resgatassem” de sua cova, dando à ela a despedida que sempre quis. Então, Ben, Bodevan, Vespyr, Kiellyr, Rellian, Zaja e Nai montam uma grande fogueira, com lindas e coloridas flores e adornos, no topo de um belo penhasco, banhado por raios de sol e agora eu lhe pergunto, quantos filmes você já assistiu com um “funeral” onde o cinza e o preto não fossem a cor predominante? Ao fazer isso, Ross não apenas desconstrói um cliché interminável, mas honra todas as questões filosóficas que levantou em seu roteiro.
Pois, por mais estranho que possa ser que marido e filhos fiquem contentes em, eles mesmos, cremarem sua amada esposa e mãe, suas crenças são diferentes das nossas, que acreditamos que cobrir alguém com uma tonelada de terra seja algo mais digno.
A cena segue e parece atingir seu ápice emocional quando Ben se aproxima de sua amada com uma simbólica pena na mão, para uma última declaração de amor:
Olá pequeno pássaro
Sou eu
Sinto muito, não sabia o que fazer
Sinto muito se fiz tudo piorar
Ele tem de parar por um momento, e aqui vemos a magnitude da dedicação de Viggo Mortensen ao papel. Com uma naturalidade surreal, o homem, que subiu as montanhas da Nova Zelândia sozinho para dar mais veracidade ao seu papel como Aragorn em “Senhor dos Anéis”, não está em um território tão distante, e encontra a mistura de sentimentos - conflitantes entre razão e paixão - e a fisicalidade - calma e segura - necessárias para interpretar um personagem tão complexo. Ele externaliza todas as muitas emoções guardadas dentro de seu coração, e o diretor nos dá ângulos perfeitos, sempre evidenciando a beleza natural em torno da cena - montanhas, florestas, o mar, todos a vista - e o excelente trabalho que o casal fez com os filhos - e também o excelente trabalho de todos estes talentosos jovens atores -. Seus rostos estão profundamente tristes, mas em seus olhares é possível ver como abraçam a situação como um ponto final no belo relacionamento que tiveram com sua mãe. Ali, eles não reagem ao que o diretor os manda reagir, mas à toda a gratificante experiência que viveram ao fazer este filme.
Ben então, toca o rosto de Leslie, e, quase sussurrando, lutando com as próprias palavras, continua seu discurso:
Meu rosto é meu, minhas mãos são minhas, minha boca é minha
Mas eu não
Eu sou seu
Ele beija seu rosto encoberto, e coloca a pena no belo colar de flores que reside em seu seio. Todos pegam fósforos e ascendem a fogueira e, se você ainda não começou a chorar, tudo bem, a cena consegue ir mais além.
Rellian, justamente o filho que questionava as ideologias dos pais, é quem inicia o momento mais belo do filme, ao anunciar para sua mãe que cantarão para ela sua canção favorita. Kielyr então, entoa com uma linda voz, repleta de sentimento e emoção, a minha versão favorita de uma música que todos conhecemos e, aí, é melhor deixar a cena falar por ela mesma e sugiro que, caso não tenha visto o filme, assista-o antes de procurar a cena em questão.
Como fechamento, vemos todos no banheiro de um aeroporto e Ben despeja as cinzas de sua amada no vaso sanitário. Não existiria outra reação tão lógica para a ação do que um riso coletivo que, ao mesmo tempo que zomba das crenças que nós adotamos sem pestanejar quanto à morte, ri em conjunto com a pessoa que ali já não existe mais, a não ser em seus corações. Seria o final perfeito caso o filme não continuasse por mais uma cena, uma síntese completa sobre uma experiência tão rica.