Crítica | Leave Her To Heaven

UM VISLUMBRE DA MODERNIDADE

Clássico Noir propõe comentário sobre o gênero e sua relação com o papel da mulher em cinema e sociedade


Imergir em um período específico do Cinema é sempre algo muito revelador, para além daquele tempo e também sobre este. Perceber o arrojo estilístico da França nos 60, o virtuosismo conceitual da Itália nos 50, as inovações teóricas da União Soviética dos 20, ajudam a melhor compreender, entender, ver filmes que ainda fazem suas trajetórias por cartazes, streamings ou torrents de qualidade duvidosa.

Mas talvez nenhum mundo provoque tamanha discrepância quando dele emergimos e olhamos o que temos materializado ao redor quanto o que se fazia nos Estados Unidos nos anos 40 e 50. Uma indústria que nunca deixou de ser indústria, que nunca se curvou a impulsos de vanguarda (a Nova Hollywood foi mais uma maquiagem que qualquer outra coisa), mas que em alguns e específicos períodos parece ter encontrado um balanço entre a produção desenfreada (um pode assistir um noir por dia e levar anos para zerar o que foi feito nessas duas décadas) e a liberdade artística.

Claro, se qualquer mérito este deve ser endereçado aos diretores, aos artistas que sob esse sistema de produção noir foram capazes de imbuir suas características próprias, de evocar nas propriedades das imagens captadas de becos, sobretudos e fumaças traços que vão do expressionismo ao macmahonismo, do Hitchcock ao Mizoguchi, do Cinema analítico ao sintético.

E em meio a muitos filmes, alguns grandes, outros esquecíveis, volta e meia um monumento como este de John M. Stahl era erguido.


Talvez o paradoxo do noir, ou talvez nem seja essa a palavra, é ser um movimento tão impregnado de seu tempo que este dificilmente passe durante os filmes. Uma das características da modernidade no Cinema, da qual o Noir é, também, um dos precursores, é justamente filmar o tempo, filmar personagens enquanto estes derivam por escombros, ilhas ou cidades (a trilogia de Antonioni, o exemplar mais fidedigno) enquanto por eles o tempo passa. No clássico, o plano devia mostrar a ação no espaço, no moderno, o plano mostra o tempo no espaço.

Mas isso me parece algo ausente em boa parte destes filmes entre os 40 e os 50 onde, entre suas elipses, seus deslocamentos fora de campo, suas explorações de espaço como algo mutável conforme o próprio tempo passa, grandes filmes e diretores filmaram recortes e ambulações, mas raramente a sensação do passar do tempo em si. Como se o noir fosse uma prisão, emocional, psicológica, artística.

Eis então que um filme como Leave Her To Heaven tinge o preto, branco e cinza com o esplendor do tecnicolor, com a vivacidade de um tempo prometido que já estava entre nós, mas que ainda parecia irreal demais em sua pictorialidade fantástica. Se O Mago de Oz (1939) abriu a janela, esta ficou na memória por anos, décadas, até se tornar de fato uma entrada para esse novo mundo colorido.

Em sua primeira cena, dois homens olham enquanto outro rema para longe em um rio. O vento batendo nas árvores, e o próprio diálogo entregam: a passagem do tempo.


A seu modo, John M. Stall parece fazer de Leave Her To Heaven um comentário próprio sobre essa mudança, tal qual sobre outras mudanças em uma sociedade que via, naquele 1945, o fim da segunda guerra.

A janela, porém, é inversa ao clássico infantil.

Se em sua primeira metade conhecemos um mundo fabuloso, adornado por flores e contornados por montes, na segunda somos devolvidos à opacidade, ao vazio característico do gênero que divide com o faroeste a alcunha de mais norte-americano de todos. Daí é até curioso que o pai de Ellen tenha um rancho, e uma das cenas centrais do filme seja ela espalhando as cinzas dele pela propriedade, uma herança que não necessariamente anda para frente, mas se fixa em moldes pré-estabelecidos. Um noir em terreno de faroeste, em dialética com uma narrativa sensível à modernidade.

E realmente, tudo naqueles primeiros 40 minutos ou algo beira o onírico, do encontro do casal no trem (a dormida fajuta de Ellen prova o caráter maquiavélico do filme) ao acaso arquitetado na casa da família. "Presos" sob um mesmo teto, com certeza irão se encontrar muitas vezes, e cada uma parece mais romântica que a outra, por mais que sempre algo em cena pareça indicar uma tragédia iminente. Pode ser dentro de um mesmo plano sintético, como a mãe que fica na varanda, ou em um dos muitos cortes que parecem premeditar reações (o plano singular da irmã ao vê-los interagindo me remete a Senhorita Oyu (1951) - o espaço e o tempo dentro do filme como determinantes para o que ocorre a seguir).

Mas se já há, lá cedo, essa sensação, ao relembrar as mesmas cenas após o final da projeção, o filme parece se revelar. A cena do poço, onde Ellen nada com as crianças em seu maiô alienígena, se torna logo uma premeditação sinistra, um aviso sádico de um terror inevitável. Daí percebemos, também, como todos ao redor de Ellen parecem dotados de um naturalismo abobado, enquanto ela é um monumento de expressão: seja ela sedução, encantamento ou mesmo tristeza.

E o cruzamento da janela é, tal qual a gestualidade daquela primeira metade, sutil. Em uma conversa à mesa, uma das sagradas instituições da família norte-americana, a paixão da esposa começa a se misturar com obsessão, em um plano contra-plano já não mais memorável pelo tempo de cada plano, mas pela presença expansiva de Ellen no espaço do filme. Espaço esse que agora é comprimido e abarrotado: se os dois saem do rancho, o irmão do marido (sou péssimo com nomes em filmes e preguiçoso para ficar indo e voltando) também deixa seu próprio "jardim" aberto para se confinar em paredes que, descobrimos, não escondem um ruído sequer dos cômodos ao lado.

Mas Stall parece menos interessado em explorar esses espaços de maneira virtual e tridimensional (como faziam Preminger, Lang, Tourneur e outros grandes nomes do noir), mas sim em caracterizá-los como essas instituições, como essas dimensões acessadas pelos personagens seja em sonho (o rancho, o passado) ou pesadelo (as casas, a modernidade). Um filme que vai do clássico ao moderno, e daí, não tão distante de Antonioni, um moderno que parece sufocar a figura feminina mais do que libertá-la.

Pois, casada com um homem que hoje poderia ser lido como, no mínimo, assexuado, fica claro que tudo que Ellen quer, e talvez tudo que precisava para suprimir sua face de mulher fatal disposta a qualquer coisa é, nas palavras de Nicole Kidman em um suspense matrimonial que me parece emprestar um tanto de Leave Her To Heaven:

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