Crítica | O Homem Duplicado

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Assim que “Enemy”, segundo filme de Denis Villeneuve lançado em 2013 (o primeiro sendo “Os Suspeitos”), começou, me senti transportado para dentro de seu nocivo universo.

O diretor franco-canadense que, tanto antes, mas principalmente depois na carreira, seria responsável por criar algumas das obras de grande escala mais introspectivas em anos (“A Chegada”, “Blade Runner 2049”), entrega uma adaptação do livro de José Saramago, “O Homem Duplicado”, modificando apenas o necessário para que a história se passasse em Toronto e não em Portugal e, principalmente, adicionando camadas de sua própria interpretação para tornar a experiência ainda mais complexa.

Expresso pouca vontade ou, melhor, não há necessidade de tentar explicar os muitos significados impressos na trama, quando tantos outros críticos e até mesmo o próprio diretor já ofereceram explicações para todas as suas muitas alegorias. Ao final, parece certo que ambos os personagens interpretados por Jake Gyllenhaal - e a partir daqui SPOILERS - são a mesma pessoa que, por conta de conflitos quanto à própria natureza, acredita ser dois homens idênticos, mas diferentes. E sim, as aranhas representam sua visão das mulheres. E não, ele não consegue fugir de si mesmo, não importa o quanto tente. Mas isso tudo, por mais que dê coro ao intenso suspense criado pela narrativa, de nada faria efeito se o que vemos, e não o que entendemos, não se fizesse valer por si só.

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Dito isso, caso você tenha assistido à “Enemy”, e utilizarei o título original do filme por não revelar nada sobre sua trama e se mostrar enigmático assim como a mesma, e esteja louco de vontade de contar para alguém ou recomendar para seus amigos, família, colegas, etc, acalme-se. Eu, e provavelmente muitos outros, também passaram pela mesma necessidade, afinal, como todo grande filme de suspense, o longa de Villeneuve provoca reações químicas e físicas em você. Mas este, definitivamente, não é um filme para todo mundo.

E não que sua trama não seja engajante, pois é, e qualquer pessoa que ao menos goste de filmes do gênero se pegará, muito possivelmente, entrelaçado por ela. A simples ideia do Doppelgänger, usada com maestria por Christopher Nolan em “O Grande Truque” e por Jordan Peele em “Nós”, já é apavorante, ainda mais quando todos os elementos do longa funcionam em sinergia para te contar, sem a necessidade de falar nada, que algo de muito ruim está prestes a acontecer. Desde a cinematografia, mergulhada em uma paleta amarelada, árida e que retrata o enjoo do personagem de Gyllenhall com a própria vida, à trilha sonora de composições clássicas, com violinos esticando suas notas até se passarem por ruídos, arranhando seu ouvido nos maiores momentos de tensão, ao excepcional design de produção, escondendo por todos os cenários dicas capazes de explicar a pesada simbologia que permeia a trama.

Esta simbologia que, por sua vez, tem papel essencial em desvendar as alucinações do Adam de Gyllenhall. As muitas alusões à aranhas chamam a atenção de todos, mas seu efeito é potencializado graças às frequentes alegorias envolvendo suas teias, desde os fios que cobrem a cidade ao vidro quebrado de um carro. Tudo neste filme foi feito para mostrar como seu personagem está preso e não importa o quanto se debata ou tente fugir, sempre acaba retornando para a mesma armadilha criada por si próprio. Incapaz de resistir à suas tentações sexuais que, indubitavelmente, prejudicam não apenas sua vida pessoal e profissional, mas também sua sanidade mental, Adam faz dele próprio (note como em praticamente todas as cenas há pelo menos um reflexo, seja nos prédios envidraçados, no espelho do carro, nos óculos escuros, no espelho do banheiro) seu maior inimigo.

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Mas apesar de que todos estes elementos, conduzidos com maestria por Villeneuve - que transforma a curta uma hora e trinta minutos de projeção em uma viagem imersiva que parece durar dias - não sejam exatamente difíceis de serem notados, a construção do quebra cabeça necessita mais investimento do público do que simplesmente emprestar os olhos ao filme. A tensão provocada pela trama é tamanha que se torna impossível tentar desvendar qualquer coisa, forçando os mais interessados a, ou re-assistirem, ou procurarem as explicações que, como disse antes, são abundantes na internet. Justamente por isso, por passarem por uma experiência tão sufocante e, ao terminarem de assistir, não conseguirem entender o que haviam assistido exatamente, muitos podem preferir julgar o filme como pretensioso em excesso ou, simplesmente, chato. E isso é uma pena e uma dádiva, afinal, “Enemy” é um daqueles filmes que é melhor para quem prefere vê-lo dessa forma.

O que explica sua recepção morna na época de seu lançamento, pois diferentemente de outras obras de Villeneuve, universalmente abraçadas pela comunidade crítica, este é um filme esquisito e econômico, repleto de nuances escondidas sob sua estética desafiadora e que não parece ter saído das mãos de um homem que já começava a se acostumar com a grande escala que viria a trabalhar no futuro. O poder de deixar alguém sem respostas é o que fez muitas grandes obras (incluindo outra que também retrata dois homens em um só - cof, “Clube da Luta”, cof -) serem dilaceradas em seus primeiros anos, apenas para serem apreciadas décadas depois.

Oferecendo uma interpretação própria acerca de tudo que li sobre o filme e refletindo sobre pontos da narrativa os quais acredito não terem sido completamente desvendados, acredito que o(s) personagem(ns) de Gyllenhall represente(m), além do medo de se prender nas teias de uma mulher, a monotonia provocada pelo cotidiano e como necessitamos de algo que nos tire deste modo de vida cíclico. Assim como ele diz em uma de suas aulas, é um padrão que se repete, não apenas na sua vida e nele próprio, mas em diversas pessoas ao redor do mundo que, por aderirem a escolhas que tiram sua liberdade, se veem em uma briga constante consigo mesmo, imersos em caos e desordem provocados pela ordem excessiva provocada pela conformidade. No caso dele, há algo de sinistro e de extremamente errado, mas não se julgue por se identificar com as mesmas preocupações deste personagem tão fascinante.

No momento em que “Enemy”, primeira obra prima de Denis Villeneuve, terminou, me senti extenuado e obviamente assustado com o inesperado (que deveria ser esperado) e brilhante final e, mesmo que incerto do que havia acabado de assistir, sabia que tinha assistido à algo que lembraria para sempre.

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