Crítica | Earl Sweatshirt - Some Rap Songs
Se há algo de bom na indústria musical de hoje é que realmente não é necessário ter uma infinidade de hits para fazer de alguém um ícone.
Anos atrás, o heterodoxo e idiossincrático grupo Odd Future aparecia para a cena como um modo renovado e diferente de se fazer hip-hop, mas o tamanho de sua influência só poderia ser entendido anos depois, quando suas estrelas mais brilhantes embarcassem em surpreendentemente bem sucedidas carreiras solo. Injusta como a vida possa ser, Frank Ocean, Tyler The Creator e Earl Sweatshirt nunca atingiram um top 10 na Bilboard Hot 100, mas atingiram objetivos que você simplesmente não planeja para si mesmo. Marcar a vida de um número significante de pessoas o suficiente para serem considerados ícones da música sem que tenham que se vender para as massas.
Earl é, talvez, o que mais se encaixa nessa colocação. A história vai se lembrar dos últimos álbuns de Frank e Tyler como alguns dos melhores da década, mas “Doris”, e “I Don't Like Shit, I Don't Go Outside: An Album by Earl Sweatshirt” parecem capítulos destinados a serem lembrados apenas nas vidas das pessoas que marcaram. “Some Rap Songs”, o terceiro álbum de Earl, tem direito a todo o hype que grandes projetos fora do mainstream podem ter em 2018. A preocupação não é se seus singles serão hits, ou quantas cópias o álbum vai vender, mas sim a que novos lugares cada uma dessas músicas vai nos levar.
Mas Earl está um passo além na idiossincrasia.
Eu tentei. Ouvi mais de cinco vezes até agora, mas, mesmo tendo decifrado o que julgo possível de alguns dos álbuns mais enigmáticos dessa década, “Some Rap Songs” está um passo além. Nem “The Life Of Pablo”, nem “Blonde”, nem nada de Death Grips ou Bon Iver desafiou tanto o significado de música nos anos 2010, quiçá do século, como o novo projeto do rapper faz tão “despretensiosamente”.
Talvez o mais próximo de algo que você possa recortar e chamar de uma música propriamente dita seja “The Mint”, o segundo single do álbum e talvez seu melhor momento. Construído em volta de um simples sample de piano, com ele e Navy Blue rimando sobre o passar do tempo e estar sob uma linha tênue entre o controle e a perdição. A entrega depressiva de Earl contrasta a produção que, como todo o álbum, oferece sinais de esperança ausentes em muito de seu trabalho passado. Detalhe, é também a faixa mais longa do projeto, com apenas dois minutos e 45 segundos.
Quase como uma coleção de pensamentos e ideias, “Some Rap Songs” não se parece em nada com qualquer álbum lançado recentemente. Cada uma de suas faixas é sub-produzida propositalmente, com batidas discretas, instrumentais e samples distorcidos e toques de jazz sutis o suficiente para que você tenha que se esforçar, na maioria das vezes, para encontrá-los. É uma produção que, de forma não ambiciosa, espera ambiciosamente que pessoas como eu, e você que está lendo, tentem decifrar e entender o uso de cada sample, instrumento e a mais simples das referências em cada verso. Durante a menos de meia hora das 15 faixas do álbum, Earl detalha a luta contra si mesmo ao falar sobre tudo que passou durante seus dois anos completamente afastado da música. Ele não é nenhuma celebridade, mas o fato de seus fãs estarem fazendo exatamente o que ele quer mostra que ele sabe que já se tornou algo maior que isso.
Isso fica mais evidenciado no primeiro single, “NOWHERE2GO”, onde Earl deixa as alegorias de lado e fala diretamente sobre sua depressão. Embora sua energia não mude muito durante o projeto, a consistência de seus versos é sua maior virtude. Mesmo sem apresentar uma variedade de flows e técnicas que virou comum para qualquer rapper hoje em dia, ele mostra o porquê de ser tão reconhecido.
You went and gave me a cape (Cape)
But that never gave me no hope (Hope, yeah, hope, hope)
I found a new way to cope
It ain't no slave in my soul
A ótima abertura, “Shattered Dreams”, que é também a única outra faixa a exceder dois minutos, é construída em volta de um sample distorcido de uma banda que você não encontra na primeira página do Google. Nela, Earl comenta diretamente sobre sua depressão e como, aparentemente, parece estar fazendo algo para deixá-la para trás. As peças do quebra-cabeça, no entanto, estão maravilhosamente escondidas em pontas soltas. No “refrão”, ele pergunta o porquê de ninguém o avisar que estava sangrando, uma alegoria clara à depressão crescente, mas, logo na próxima frase, pede para que não o acordem de seu sonho. Que sonho?
“Red Water”, que funciona como um breve fechamento de sua antecessora, talvez esclareça tudo com Earl rimando em forma de 8-bars em loop. “Blood in the water, I was walkin' in my sleep / Blood on my father, I forgot another dream”. O sonho é, na verdade, o estado que ele se encontrava. Isolado e sob uso de drogas, preferindo não acordar para a terrível realidade.
É um álbum que pretere as melodias pelo estado de espírito que seu artista se encontra. É difícil se conectar com ele, pois é extremamente pessoal e não faz questão de te levar junto. Em faixas como “December 24” e “Ontheway!” ele aumenta a firmeza de sua voz, mas logo volta para a usual depressão e estado de quase paralisia que permeia todo o disco. Isso é ao mesmo tempo uma qualidade e um adendo: você pode passar muito tempo explorando “Some Rap Songs”, mas pouco desse tempo vai ser gratificante ou proveitoso.
Porém, se seu último projeto fora marcado pela depressão e falta de esperança, aqui há uma luz brilhando por trás de toda turbulência que ele tão insistentemente nos mostra.
As últimas três faixas do álbum são dedicadas à seu pai, um conhecido poeta e ativista da Africa do Sul, que falecera no início de 2018. “Playing Possum” seria uma tentativa de Earl de reconciliar ele e sua mãe, com a faixa sendo composta apenas de gravações de ambos. “Riot”, o fechamento, traz apenas um instrumental tocado justamente por seu pai. Anteriormente, em “Azucar”, Earl detalha sua complexa relação com a religião que sua mãe seguia firmemente desde que ele era pequeno, e sempre que ele contempla seu próprio fim durante o disco, menções sobre ela são feitas. Nenhuma dessas faixas é, de forma alguma, proveitosa para quem as ouve, mas mergulhar na mente de Earl é algo fascinante por si só, talvez por ele parecer dolorosamente real e comum.
You called crying when I told you these the last days
It's all mine, could've split the last plate
Niggas didn't have faith, so I stopped tryin'
Apologize, and we outta time
Please get ya alibi straight, you ain't gotta lie
Shook tradition, did it my way
No sense in looking in the sky
“Some Rap Songs” é um lembrete de todo o talento de Thebe Neruda Kgositsile, mas de forma alguma um atestado de sua grandeza. Sua consistência durante todo o álbum é quase assustadora e o fato de ele carregá-lo inteiro em um único estado de espírito apenas nos mostra a ponta de todo o iceberg, mas fica claro que este não é um álbum para os fãs aproveitarem e aumentarem ainda mais a idolatria por seu herói que não tenta em momento algum esconder o fato de não usar capa ou não ser capaz de voar.