Beyond | O Homem Duplicado (e Moderno)

A primeira frase de “O Homem Duplicado” diz o seguinte:

Caos é a ordem ainda não decifrada.

Seu significado, para a narrativa e compreensão de “Enemy” - título oficial do filme e que, por incrível que pareça, combina mais com o que assistimos do que a literalidade do título do livro de José Saramago, no qual foi inspirado - não é necessariamente essencial, sendo que a frase serve mais como uma análise do que assistimos do que uma explicação.

Inclusive, este texto tem pouca (nenhuma, na verdade) intenção de “explicar” o longa que, lançado há quase oito anos, já tem uma extensa discussão na internet acerca de seus temas e mistérios. Na minha crítica (que você pode ler aqui), escrita pouco depois de assistí-lo pela primeira vez, comento brevemente sobre a interpretação considerada “oficial” da trama, então caso não saibam, leiam-na primeiro e, caso não tenham assistido ao filme, evitem este texto (e aquele) por completo, pois o objetivo aqui, como de praxe nos nossos quadros Beyond, é destrinchar as escolhas de Dennis Villeneuve que tornam esse um dos meus favoritos do século 21 e, principalmente, forte candidato à filme mais subestimado deste período.

Vejam, após lançar “Enemy”, Villeneuve emplacou “Sicario” (do qual não gosto tanto), “A Chegada” e “Blade Runner 2049” que, goste você ou não, estão entre os filmes mais celebrados destes últimos anos. O que torna comum que um filme de menor sucesso acabe sendo preterido, mesmo com todo o furor causado pelos debates acerca de seu significado. Todos os grandes diretores da história tem projetos que “sofrem” dessa maldição… aliás, todos os grandes artistas tem jóias perdidas em caixas onde o brilho de uns acaba ofuscando a perfeição do corte de outros. Não que isso seja qualquer retaliação aos dois títulos acima, os quais amo (e nem à “Os Suspeitos”, que adoro), é apenas a natureza da percepção coletiva.

Agora, passando por cima da burocracia necessária, vamos voltar ao pensamento inicial:

Dando sequência à tal frase, somos colocados dentro de uma sala escura, onde mulheres se masturbam frente aos olhos repletos de luxuria de diversos homens adultos, que parecem em transe enquanto as assistem. Logo, o rosto conhecido de Jake Gyllenhaal entra na sala e a percorre, lentamente, como que circulando pelas sombras até chegar em um lugar que parece demarcado para ele. Inevitavelmente, comparo esta cena à uma narração de “Clube da Luta”, que menciona como Tyler Durden virou apenas mais um, vagando por entre os homens que assistem, com a mesma intensidade que esses, dois de seus companheiros se dilacerarem.

(Não encontrei a cena exata, mas esta serve como comparação)



E Villeneuve evoca visualmente a sequencia, tanto com um uso leve de câmera lenta como com cortes que mostram as reações de cada um. Porém, se a culpa parece algo visível nas entrelinhas de seus olhares, ela parece exalar da postura de Jake, que chega a cobrir os olhos (de maneira que remete a uma aranha) parcialmente enquanto assiste uma mulher esmagar o aracnídeo que tomaria papel tão importante ao longo do filme.

Assim como em “Clube da Luta” aquele é o momento de liberdade, de êxtase de cada um daqueles homens, cansados da vida que levam e se sentindo presos em uma inescapável teia de aranha. Esta, que representa não apenas as mulheres nas vidas destes homens, mas também as amarras sociais e políticas que os mantém oprimidos, sem saída, e ao longo de todo o filme - e deste texto - podemos ver as analogias e metáforas empregadas para reforçar essa representação.

Por isso, ao iniciar o longa com a frase (e não introduzí-la depois, como estava no roteiro), Villeneuve não explica, mas analisa o próprio filme, pois “Enemy” é uma experiência que pode ser caótica, confusa e extenuante para quem quer que o assista pela primeira vez - o que deve resultar em muitas pessoas o chamando de presunçoso ou, simplesmente, chato. Porém, ao serem entendidas, suas alegorias se tornam tão evidentes que a magia do mistério poderia se perder, mas jamais o faz porque é aí que o filme se abre para a verdadeira discussão: enquanto caos, “Enemy” é um filme sobre aranhas, clones e mulheres, mas, enquanto ordem, é um retrato, e um reflexo, do homem moderno.

Pensem só: na primeira cena após o clube vemos o professor de história, Adam Bell, pelo espelho de seu carro, com um olhar que, re-assistindo ao filme, acredito pertencer à seu alter ego. Pouco tempo depois, Adam descobriria seu sósia assistindo à um filme, mais tarde, compararia fotos dos dois. Em todos estes ele olha para si mesmo, pensando ver outra pessoa, e em diversos momentos Villeneuve o coloca em frente a espelhos, ou olhando para janelas vizinhas onde outros homens, como ele, também vivem os mesmos dilemas. Tratam se de dispositivos, da manipulação de espaço e design de produção, que reforçam a ideia que Adam vê apenas um reflexo de si próprio, com um quê de voyeurismo por achar que o reflexo é mais atraente.

Esclarecendo desde cedo a lógica visual que rege a narrativa, Villeneuve e o diretor de fotografia, Nicolas Bolduc, pintam Toronto como uma cidade enuviada, árida e sufocante, com uma paleta amarelada/esverdeada e aquém de saturação, que suga as cores e a vida dos (vazios) ambientes abertos e fechados, os quais são sempre apresentados antes das cenas ali ocorrerem. As vigas e guindastes sugerem também uma cidade que cresce a medida que oprime seus cidadãos diminutos enquanto os fios elétricos que a cobrem servem como uma óbvia, mas eficaz alegoria para a enorme teia de aranha onde seu personagem principal se encontra preso e notem, esta teia de aranha não remete apenas à relação conturbada de Adam com as mulheres, mas à repressão social e política da qual ele fala em suas aulas de história, onde aborda o autoritarismo e a tendência da humanidade de se auto-sabotar e, principalmente, se repetir.

Repetição esta que Adam faz dia após dia, e é possível ver seu desgaste pela simples maneira como se veste ou pelo cabelo desgrenhado, além de que os fios voltam a ter papel importante ao servirem como sua condução (energizando os trens) para o trabalho ou simplesmente como conexão de internet (ele não tem Wi-Fi no laptop), mostrando como, em todos os momentos, Adam está preso. Algo também evocado em seu apartamento vazio e impessoal, no qual Villeneuve usa janelas e paredes para isolá-lo nos cantos dos quadros, e percebam como a atmosfera carregada parece dar peso na própria postura de Gyllenhaal, sempre encolhido e cauteloso em seus movimentos. Para evitar que essa atmosfera sugue completamente a energia destes primeiros dez minutos, onde “quase nada” acontece, o diretor sempre deixa a câmera se movimentando em união à trilha sonora, de Daniel Bensi e Saunder Jurriaans, à base de ruídos sinistros e ameaçadores que sugerem um perigo adjacente à todo o momento - e este existe, pois o inimigo do título reside dentro da cabeça do protagonista. Portanto, onipresente.

E percebam como, ao tomar seu tempo mostrando a natureza cíclica de sua rotina, o filme não apenas dá sentido à exaustiva repetição do cotidiano, mas à tendência de Adam de repetir os erros do passado. “O primeiro evento é uma tragédia, enquanto o segundo é uma farsa”, ele fala em determinado momento, evidenciando ali a forma como se auto-avalia e como avalia seu clone, que apareceria logo depois.

Em uma conversa desconfortável e que, assim como pontuado pelo roteiro, definitivamente não foi a primeira tentativa falha de interação entre Adam e um colega de trabalho, este o indica um filme (“local”, pistas desde ali) “alegre”, e embora no roteiro o colega comente sobre a semelhança de Adam e um dos figurantes, a omissão no filme de nada afeta o incidente incitante do primeiro ato: quando Adam sonha com seu duplo para apenas então perceber que o havia encontrado na recomendação do colega. Aqui, o design de produção acertadamente traz fortes tons de vermelho no tal filme, e a partir daí Villeneuve inclui diversas imagens remetendo a pares… ou melhor, nós tendemos a começar a enxergar o padrão em tudo, desde pilares de marquises (normalmente são sempre dois!), à espelhos e quadros duplicados nos apartamentos, à instâncias mais óbvias como dois prédios idênticos próximos ao apartamento de Anthony. Em um momento mais subjetivo, a namorada de Adam, Mary, subitamente se incomoda com algo durante seu também repetitivo sexo, e decide ir embora - teria ela visto o “outro” homem?

Como um confesso fã da temática do duplo (ou Doppelgänger) e todas as suas interpretações e implicações, na primeira vez que vi o filme estava completamente apavorado com o que poderia acontecer. Da segunda vez, o pavor deu lugar à um senso de (quase) empatia por entender o terror presente na cabeça de Adam (afinal, é como se eu o tivesse experienciado na primeira assistida), mas mais ainda à uma sensação de (quase) pena por perceber o quão fraco é aquele homem (a Tragédia) que, por não conseguir resistir à tentação, se entrega à uma fantasia (a Farsa) tão destrutiva. E aqui, é claro, “Enemy” foge do livro de Saramago (o qual li apenas um resumo, mas que oferece uma outra origem para o “evento principal”) e se aproxima de outros exemplos no Cinema, como o maior de todos em “Persona”, meu filme favorito em “Clube da Luta”, e o candidato a jovem clássico, “Cisne Negro”.

Construindo de maneira agoniante o encontro entre os dois homens, somos apresentados ao outro componente da equação na bela Helen, esposa de Anthony, que em sua primeira cena se encontra de costas para a janela com o brilho da rua a tornando um ser angelical. Pois se Mary (a escolha do nome é perfeita), a amante, é apresentada na escuridão, é apenas lógico que Helen, a esposa e mãe de seu filho (outro clonezinho a caminho, diga-se) seja apresentada na luz.

Sabendo se utilizar da trilha sonora, que chega a brincar ao adotar tons quase cômicos nas cenas que envolvem as primeiras interações entre os dois homens, Villeneuve e o editor Matthew Hannam montam o filme com perfeição à fim de reforçar a tensão presente nas cenas envolvendo a esposa, que logo percebe o comportamento do marido. A manipulação de espaços da dupla (diretor/editor, não Adam/Anthony) atinge o brilhantismo em pelo menos três desses momentos, cada um deles sendo capaz de gerar calafrios no espectador: no primeiro, Helen reconhece a voz do marido em Adam, que telefona de um telefone público em um ambiente tão aberto e vazio que sugere toda a vulnerabilidade dele naquele momento; no segundo, ela o visita na faculdade e o que inicialmente é um plano-contra-plano que os deixa próximos (e mostra o choque interpretado pela atriz) logo desenvolve para um aberto que evidencia a distância entre os dois, e segue para um uso perfeito do bloqueio oferecido por um muro; por fim, no terceiro, quando esta pergunta ao marido o que está acontecendo e, ouvindo um “eu não sei”, responde com um “eu acho que você sabe”, cumprindo também uma máxima de que o roteiro deve sempre estar à frente de seus espectadores.

Logo após esta frase, o filme corta para mais uma imagem remetente ao subconsciente de Adam, de uma mulher com cabeça de aranha caminhando em sua direção, em um corredor estreito e sem saída.

Graças à toda essa construção, tensão e apreensão de cada um dos personagens, e pela atmosfera promovida pelo filme, quando chegamos ao fatídico encontro fica claro que nada de positivo virá deste. E a interação entre Gyllenhaal e Gyllenhaal não poderia ser mais desconfortável, com “os dois” a meia luz e com uma proximidade que exala perigo e hesitação - e percebam como a cama bloqueia a saída de Adam - além, é claro, de evidenciar a diferença entre os dois homens: Anthony é seguro de si e se veste de maneira estilosa, Adam é um ser quase medroso e se veste comumente. Voltando à “Clube da Luta”, é possível associar os mesmos temas homossexuais presentes no filme de David Fincher à esta, à cena inicial, à resposta de Anthony a Ellen (“era um homem!”) e ao momento onde o porteiro o aborda no elevador, assim como os membros do Clube da Luta abordam uns aos outros na rua - além de reforçar a ideia de que Adam tem uma posição privilegiada no tal clube. E é claro, em ambos os filmes as mulheres ficam de fora do clube do bolinha e são tratadas como uma ameaça à paz de espírito do protagonista (hey, Marla) que parece cogitar ter um caso consigo mesmo.

E prestem atenção no detalhe na armação dos óculos escuros que Adam compra e que usa para “se passar por Anthony”.

Evidentemente, a monotonia na vida de Adam acaba após o encontro, sendo que Anthony rapidamente decide manipulá-lo com algo que sabe que este fez - afinal, ambos são a mesma pessoa, logo, ambos transaram com Helen -, e do qual Adam não consegue negar. Aqui, a personalidade dos dois começa a se aproximar em um ponto de encontro, apenas para se distanciar enquanto se aproximam de seu objeto de desejo. Em outra bela decisão de montagem, após descobrirmos que há apenas um, em um diálogo com a mãe de Anthony (este é seu nome verdadeiro), vemos a aranha gigante caminhando cuidadosamente pela cidade - e que, como apontado na famosa análise de Chris Stuckmann, empresta seu design de uma escultura Canadense chamada de “a mãe aranha”.

Agora, com seus destinos invertidos, Anthony procura a “liberdade” após seis meses de fidelidade, enquanto Adam luta contra a própria infidelidade a fim de retornar para sua esposa. Representando uma clara ameaça, a moto e capacete de Anthony são pintados de vermelho e azul, além de que o próprio veículo pode simbolizar a maneira como este pretende apressar a repetição do “ciclo” para poder quebrá-lo novamente. Em outra cena com perfeita manipulação de espaço e edição, Anthony passa lentamente por Mary, até que o próximo plano mostra ela passando por ele enquanto o mesmo a espera passar para tirar o capacete - ali, sabemos do perigo, mas ela não. Porém, ao deixar a moto, que é relacionada com a sua liberdade, e pegar o trem, movido à cabos, Anthony volta à teia que o prendia enquanto Adam, e seu espaçoso e decorado apartamento em uma área aberta dá lugar à claustrofobia de um carro e de um quarto de hotel escuro. E é apenas lógico que sua morte no acidente traga o vidro despedaçado em forma de teia.

Por sua vez, Adam parece um adolescente tímido perto de Helen, da qual claramente se sente atraído - ele a ama, afinal - e, ao retornar para ela, que parece conhecer a natureza do marido e ser compreensiva com tal, ele reinicia seu próprio ciclo. Aqui Villeneuve, e a trilha, retratam um momento doce, quase inocente, sempre deixando os dois no quadro, conectados seja pelos rostos lado a lado, ou pelas mãos entrelaçadas, além de que a iluminação se torna quente, calorosa. Mostrando, novamente, que a resposta, que o certo para seu protagonista é reconhecer suas responsabilidades como marido e pai.

21042835_20130923094921255.jpg-r_1920_1080-f_jpg-q_x-xxyxx.jpg

Porém, no bolso de seu casaco, colocado por Anthony antes de consumar seus desejos, está a chave que serve como referência óbvia para o clube do início, mas também para as fantasias e desejos que tenta deixar aprisionado. Aqui ele volta a ser Anthony e fica claro, mais uma vez, que é essa a faceta de sua personalidade mais forte e que tem dominância sobre a outra.

Fazendo um paralelo com uma das únicas outras obras capaz de captar o lado mais obscuro do tal homem moderno nestes últimos anos, é curioso como “Enemy” parece ecoar alguns dos temas de “My Beautiful Dark Twisted Fantasy”, onde Kanye West aborda todos estes anseios proibidos (“Hell of a Life”), além da opressão social à qual somos submetidos (“Power”), que nos força a desistir de nossos sonhos (“Dark Fantasy”) e tira nossa criatividade (Anthony queria atuar, lembrem-se). Naquela que acredito ser sua melhor música, em “Runaway” Kanye fala algo que poderia perfeitamente ser proferido por Adam: “Eu poderia ter uma boa garota, mas ainda estaria viciado nas ruins”, além de construir toda a narrativa da canção em torno de sua dificuldade de se expressar e do pedido que faz à mulher que ama. Para que ela fuja, o mais rápido que puder.

E percebam como as últimas duas faixas do disco refletem a dualidade:

You're my devil, you're my angel
You're my heaven, you're my hell
You're my now, you're my forever
You're my freedom, you're my jail
You're my lies, you're my truth
You're my war, you're my truce
You're my questions, you're my proof
You're my stress and you're my masseuse

A opressão e a necessidade de se rebelar:

Lost in this plastic life
Let's break out of this fake-ass party
Turn this into a classic night
If we die in each other's arms
Still get laid in the afterlife

E, por fim, a irônica pergunta que reflete o abrasivo mundo em que aqueles personagens habitam:

Who will survive in America?

Na muito comentada cena final, quando Anthony começa - volta* - a mentir para Helen, ela, que sabe da natureza do marido, assume a forma que o assombra e que vemos repetidamente ao longo do filme. Mas ele a olha não com medo, e sim com cansaço e, quem sabe, tristeza, por saber que jamais será capaz de resistir às suas tentações. O que me leva à uma das decisões mais enigmáticas de Villeneuve, que retrata Anthony vivendo uma vida mais leve, em um local espaçoso e aberto, mas “preso” ao matrimônio, enquanto Adam é “livre” enquanto vive com a amante, mas é preso pela culpa e pelo mundo opressor onde vive.

Mostrando, talvez, que não importa se este consegue ou não fugir de sua própria natureza, pois estará preso de qualquer maneira nas teias que o Homem, duplicado e moderno, constrói para si próprio.

Anterior
Anterior

Crítica | Os Sete Samurai

Próximo
Próximo

DPOH#10: Especial EMMYs 2020