Crítica | Straight Outta Compton

Uma das duas grandes dificuldades de se fazer filmes auto-biográficos, quando estes tem de cobrir um extenso período de tempo, é fazer com que não se tornem episódicos. A outra, que se prova ainda mais inevitável, é não apelar para a auto-indulgência ao vangloriar - e até aumentar - o legado daqueles ali representados. Logo, o que vai determinar se este filme de F. Gary Gray sucede em erradicar ambas estas tendências, é justamente como você enxerga a vida e obra do N.W.A.

Fundado no início de 1987, o grupo composto Eazy-E, Ice Cube, Dr. Dre, Mc Ren, DJ Yella e Arabian Prince (amplamente ignorado no filme), foi um dos primeiros a trazer o comentário social para sua música que, em meio à misoginia, drogas e ostentação comuns no Hip-Hop, se mostrou um dos elementos essenciais na luta contra a repressão racial nos Estados Unidos. E se o gênero é hoje diretamente associado com a ascensão da comunidade negra no país, muito se deve à revolução cultural proporcionada por esses artistas. Como diria Kendrick Lamar no final da projeção, sua arte era mais um estilo de vida do que, propriamente, música.

Claro, para os puritanos (cidadãos de bem, talvez), a forma como aqueles jovens se portavam por trás - e na frente - das câmeras não era algo digno de elogios, e o maior acerto de Gray é não economizar, ou melhor, não censurar a vida de excessos que o grupo passou a levar após conhecer a fama. O diretor se mostra extremamente hábil em tornar orgias em plena luz do dia em acontecimentos naturais na vida dos rappers, constantemente colocando conversas e decisões importantes em meio à um mar de mulheres nuas, o que apenas prova como o roteiro (merecidamente indicado ao Oscar, mas criticado por conta da única nomeação do longa ser direcionada aos roteiristas brancos) de Jonathan Herman e Andrea Berloff é envolvente, cobrindo os dez anos, que vão desde o início do grupo até a morte de Eazy-E, de forma fluida e mostrando como a história que os cerca é muito mais um motivo para viverem a vida que levam do que uma consequência da mesma.

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E justamente por não tentar romantizar a violência presente na sociedade a sua volta - é praticamente impossível concordar com a forma com que os rappers tratam as mulheres em uma noite que quase acaba em tiroteio -, mas não deixando de glamorizar sua difícil jornada ao sucesso - a fotografia exuberante de Matthew Libatique tem papel essencial em dar brilho tanto ao luxo como a própria pele negra dos personagens -, que Gray consegue encaixar as sequências musicais da forma mais evocativa, capaz de provocar arrepios nos fãs ao perceberem como fora o processo de composição de vários dos hits. Intercalando imersivos planos longos onde a câmera flutua pelo ambiente com a dinâmica montagem que quase remete à um videoclipe, temos a sensação de estarmos assistindo à um filme que nunca para, mesmo que em diversas cenas o diretor enfoque apenas no rosto de seus personagens, dando espaço para vermos suas emoções que provam que por baixo de toda a carapaça de Gangster, há jovens assustados e cientes de que qualquer erro pode ser o último.

Nestes momentos, “Straight Outta Compton” dá aula em outras biografias musicais, pois seus números não soam como sequências congratulatórias, mas sim como explosões de euforia e liberdade de pessoas que foram reprimidas por toda sua vida. É por isso que Eazy-E só consegue rimar suas primeiras linhas ao adotar a agressividade com que levava a vida de traficante até então; é por isso que Ice Cube encontra suas melhores letras ao ser discriminado pela cor de sua pele; é por isso que Dr. Dre leva sua arte tão a sério. A música para eles não é apenas uma forma de ganhar a vida, mas sim de sobreviver a ela.

Ao colocar essas motivações em primeiro lugar, é apenas justo que possamos apreciar alguns momentos de legítimo fan-service, como as breves aparições de Lakeith Stanfield - que emula a voz e flow de Snoop Dogg de forma que podemos apenas rir desconcertados graças à semelhança - e de Marcc Rose - um sósia de Tupac Shakur. Mas, por mais que não tenha descoberto se fora real ou não, o posto de melhor sequência musical fica com a performance de “Fuck tha Police” em um show em Detroit, mesmo após o FBI ter supostamente proibido a canção de ser apresentada. O que me leva a um simples diálogo, onde Eazy-E é perguntado sobre se o significado da sigla, que prova que a população negra se preocupa muito menos com a branca do que o contrário.

“Straight Outta Compton” ainda se beneficia pela incrível semelhança de seus atores principais às figuras que interpretam. Corey Hawkins pode estar na pele de um Dr. Dre muito mais calmo e pacífico do que o da vida real, mas seus maneirismos e postura de liderança relembram claramente o revolucionário produtor. Já Jason Mitchell rouba a cena como Eazy-E, convencendo não apenas pela aparência física, mas no modo de falar e andar. Porém, seria impossível encontrar alguém mais parecido com Ice Cube do que seu próprio filho, O’Shea Jackson Jr., que apesar de não ter herdado as habilidades musicais do pai, já se prova como um ator superior na mesma proporção - se não maior.

Eficaz também em colocar os personagens de Paul Giamatti - na pele do empresário corrupto Jerry Heller - e de R. Marcos Taylor - interpretando o criminoso produtor Suge Knight - como vilões que, apesar de diferentes em suas abordagens, representam ameaças de mesmo nível para o grupo, Gray consegue traçar uma metáfora narrativa opressora, mostrando que tanto pela polícia, como pelos próprios aliados, se você for negro e tiver nascido na periferia provavelmente vai se ver encurralado. As performances de ambos também convencem: um, abusando da falta de instrução dos artistas mesmo que não pareça ser aquém de afeto pelos “protegidos”; o outro, da violência que parece parte intrínseca de sua vida (como evidenciado por sua preferência pelo vermelho tanto nas roupas, como em seu estúdio, como no carro).

Tendo ao menos 15 minutos e algumas cenas a mais (há uma consideravelmente mal encaixada onde Cube briga com membros de outra gangue), é inevitável não comentar sobre as participações meramente coadjuvantes de Mc Ren e DJ Yella, membros fundamentais do grupo que - por não estarem envolvidos na produção - servem como figurantes de luxo, com pouco ou nenhum desenvolvimento. Neste sentido, o filme poderia ser ainda mais longo, desde que este tempo extra fosse dedicado à desenvolver todos os membros do grupo.

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Mas mesmo tomando certas liberdades com os fatos que cobre, “Straight Outta Compton” figura como uma das melhores biografias musicais do século justamente por nunca deixar de ser honesto e corajoso ao retratar um período tão importante na cultura norte-americana, que viria a influenciar a arte - e a sociedade - em diversos outros países ao redor do mundo.

E o fato de, mais de 30 anos depois da formação do grupo, ainda estarmos travando a mesma luta contra o racismo, prova que o N.W.A. continua vivo.

8.9

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