Beyond | Não Assista à "Drive"... se não for assistir de novo
As vezes é necessário mais de uma visita à certa obra para que todas suas camadas sejam descobertas. Nesse sentido, “Drive” seria melhor relacionado à uma cebola.
Precisei assistir ao filme três vezes para que, finalmente, conhecendo as principais características da história, pudesse apreciá-la por completo. Bem, não a história em si, pois não muito diferente de tantos outros (o influente “The Driver”, o leviano “Carga Explosiva”, o divertido “Baby Driver”, o clássico “Taxi Driver”), o filme de Nicolas Refn mostra um protagonista solitário que ganha a vida sendo o motorista de diversos assaltos na cidade de Los Angeles. Porém, ao se envolver emocionalmente com uma vizinha e seu filho, acaba se envolvendo em um esquema criminoso para livrar o marido dela, recém saído da prisão, de uma dívida que põe toda a família em risco.
Mesmo tendo sido baseado em um livro de 2005, escrito por James Sallis, “Drive” tomou, graças à seu imersivo processo de produção, contornos de um trabalho original, onde cada novo nome adicionado à produção levaria aquela simples história a lugares ainda mais extremos, utilizando a premissa de Amini apenas como o motor que move a história. Diversos membros do elenco e da produção se mudaram para a casa de Refn em Los Angeles durante as filmagens para permanecerem imersos na história e, constantemente, conversavam sobre maneiras de melhorar e aprofundar cada aspecto do longa. Por isso, assistir “Drive” uma única vez se torna um exercício tão inútil quanto julgar que seu título é apenas o verbo para “dirigir”.
E por mais que esta seja, sim, a ação que move o personagem principal, é o outro sentido da palavra que confere o peso presente na narrativa. É a drive, a motivação, o impulso que faz com que o ser humano haja de formas inexplicáveis que o título se refere, e no caso do Motorista (Driver), como é chamado nos créditos, este impulso é algo que nem ele mesmo sabe explicar exatamente o que é. O que acaba nos levando, inevitavelmente, à uma jornada mental para tentar entender as situações que o levaram até ali: uma infância ruim? Teria ele perdido os pais? Teria ele um passado obscuro? E é interessante ver como Gosling - que encontra os papéis certos para seu estilo pouco expressivo - o compõe, um homem tão solitário como Travis Bickle, mas tão quieto como o homem sem nome de Clint Eastwood que, tomado por uma postura quase niilista diante da vida e aparentemente sem planos ou desejos para o futuro, toma contornos misteriosos apenas por não abrir a boca e por não fazer de nada para chamar atenção. Ele não quer parecer legal, não quer que você pergunte, não quer que você deduza. Na verdade, ele nem liga se você está realmente ali.
É essencial, então, analisar os aspectos cinematográficos que constroem a personalidade do Motorista sem a necessidade de palavras. Desde seu trabalho não como motorista de fuga, mas de dublê - homens que não tomam os holofotes -, à forma como a cinematografia - de Newton Thomas Sigel - o retrata. Isolado e, em diversos momentos, com o rosto encoberto pelas sombras, com luzes de lâmpadas. que podem ser vistas nos mais diversos locais, raramente tocando seu rosto, fortalecendo, também, a temática noir que o filme adota.
Abusando da personalidade indecifrável e intocável do Motorista, Refn encontrou na Irene de Carey Mulligan - e sua adorável postura, frágil e pequena - o elemento necessário para que a luz entrasse no mundo daquele homem tão solitário. Visualmente o filme comunica isso em diversas cenas, como quando os dois estão conversando nos corredores ou dentro do apartamento da jovem e as mesmas luzes, que não brilham no rosto de Gosling, podem ser vistas iluminando o rosto de Mulligan, a colocando em meio à uma aura que claramente o encanta.
E Refn consegue transformar estes pequenos momentos, onde os dois se conhecem e se aproximam, em algo quase como um sonho, onde ambos vivem uma embaraçosa, mas verdadeira história de amor que dá à ambos o que precisam: ela, proteção, já que seu marido está preso; ele, o carinho que, aparentemente, não é presente em sua vida.
Essas rimas visuais são parte fundamental da apreciação de “Drive” e, mais até mesmo do que seus principais elementos conceituais, não podem ser apreciados a primeira vista. Perceba como os tons alaranjados, comuns em filmes situados em Los Angeles, tomam conta de boa parte da projeção, mas aqui remetem menos ao aspecto praiano da cidade e mais à parte do calor envolvendo as cenas de ação, inclusive se combinando ao evocativo vermelho sangue nas paredes do bar dos criminosos, dando cor à um dos carros da oficina onde o Motorista trabalha e, principalmente, o escorpião em suas costas (que por sua vez já simboliza tanto a violência como a autodestruição, novamente rimando com a narrativa). O apartamento de Irene, inclusive, mistura esses tons com verde - cor associada à calma e à natureza - e geralmente os contrapõe, quase como se ali fosse um dos poucos lugares onde o Motorista pode respirar, e é notável como eles ficam menos visíveis na cena onde Gabriel, marido de Irene interpretado por Oscar Isaac, retornam a casa.
Mas talvez a cena que melhor exemplifique como os visuais de “Drive” valem mais do que seus diálogos seja aquela onde Gosling e Mulligan dividem um momento amoroso em câmera lenta dentro de um elevador (cuja porta é laranja), com a luz da lâmpada ao lado crescendo exponencialmente e, enfim, iluminando a cabeça de Gosling por completo apenas para, segundos depois, ter seu brilho abaixado quando ele dá as costas à luz e à amada para massacrar um vilão. Ao final desta cena, o escorpião nas costas do Motorista é visto em plano detalhe, enquanto Irene, visivelmente abatida por perder primeiro seu marido e agora o Motorista, tem sua última cena com ele e é deixada no subsolo escuro, com luzes pálidas, sem o calor que havia entrado em seu mundo.
E voltando ao personagem de Oscar Isaac, tanto ele como o Bernie Rose, de Albert Brooks - geralmente associado à comédia - foram concebidos em parceria com seus atores para fugirem dos estereótipos que ambos trazem à filmes dessa natureza. Gabriel, por baixo da postura de durão (“te vejo em quatro”), parece genuinamente um homem bom e preocupado com a família, disposto a tudo por ela, mas representa claramente o fracasso de um homem que fez escolhas erradas e agora não pode escolher escapar das mesmas. Isaac, como o grande ator que é, consegue expressar essa profunda emoção de inutilidade e desespero nas poucas cenas que aparece.
Já Bernie se prova um dos vilões mais implacáveis dos últimos anos justamente por não ter qualquer prazer sádico em assassinar suas vítimas, mas sim por tratar tal ação como um mal necessário provocado pelas mesmas. Poucas mortes são mais arrepiantes como aquela protagonizada pelo Shannon (outro personagem fracassado) de Bryan Cranston, onde ele tenta tranquilizar o indivíduo com assustadora sinceridade dizendo que estava feito e que ele não sentiria dor. Ou, ainda mais arrepiante, é seu olhar de pena para o Motorista ao avisá-lo sobre o resto de vida que ele teria pela frente. Porém, de acordo com o próprio Brooks, o que o chamou para o personagem foi o fato de ele ser diferente, de sentir o peso de suas ações por mais que não existe em realizá-las. Enfatizando isso, Refn traz um belíssimo plano, após Bernie limpar a lâmina usada para matar Shannon, onde seu rosto aborrecido recebe um feixe de luz pálida, enquanto os tons alaranjados dos outros cômodos não conseguem penetrar a escuridão daquele onde se encontra.
E esta cena, em particular, é uma das mais tensas do longa justamente por vir logo após uma série de assassinatos provocados por ambos que apenas amplificam o medo que sentimos por suas ações. Pois se Shannon é indiscutivelmente o vilão, são do Motorista as cenas mais violentas, como aquela genial que o mostra em meio à um camarim de boate de Strip (o olhar das mulheres para a situação é genial, elas com certeza estão acostumadas com aquele tipo de coisa), à já falada cena no elevador e também em sua perseguição pelo Nino de Ron Perlman, onde o rosto de Gosling é coberto por uma máscara careca, homenageando nomes como Bruce Willis e Jason Statham, acostumados com o tipo justiceiro e que, possivelmente, ele tenha trabalhado como dublê em diversos filmes.
É interessante perceber, também, como tanto o Nino de Perlman, como a Blanche de Christina Hendricks - que com pouquíssimas cenas consegue passar a angústia no olhar de alguém que, assim como Gabriel, é uma vítima da própria vida (algo que se comprova pelo fato de que Refn queria uma prostituta para o papel) - tem associações com o mesmo vermelho que corresponde ao fim de ambos: ele, no carro; ela, no cabelo.
Com um olhar afiado para a estilização da violência mostrada, Refn consegue, mesmo mostrando os pedaços de cérebro e rios de sangue de forma rápida, passar todo o impacto gráfico presente em cada uma das cenas. Nós sabemos o que está ali, escondido no canto da tela, mas ver não torna a situação pior ou melhor, provando que a construção de cada um daqueles momentos é o que traz o impacto desejado. Hábil também em utilizar a falta de orçamento a seu favor, ele torna as cenas de perseguição em exemplos de edição e efeitos práticos filmando a maioria delas de dentro do carro, da perspectiva do Motorista, aproveitando também o fato de Gosling ter filmado algumas das cenas sem o uso de dublês.
Optando por mostrar um retrato borrado e distante de Los Angeles, que por vezes aparece apenas pelas arestas de dentro dos carros, a cinematografia puxa para os anos 80 sem soar barato, dando uma áurea etérea e quase fabulesca à cidade dos anjos. É como se, naquele sub mundo onde um embate destes acontece, nem as pessoas normais, nem a polícia, se fizessem presentes. A distância do Motorista com o mundo a sua volta pode ser percebida, também, como uma análise para seu isolamento: as luzes da noite estão borradas pela distância, os prédios vistos da janela, também.
E se o visual é de suma importância para “Drive”, o mesmo pode ser dito de sua trilha eletrônica, disruptiva, que exclui certos instrumentos - como o baixo - afim de excluir também os efeitos emotivos que o mesmo poderia passar. Já a escolha de “A Real Hero” para finalizar a obra, por mais que liricamente encaixe perfeitamente com o estado de espirito do Motorista - agora um herói por ter salvado as pessoas com quem se importa e também um ser humano por se importar com outras pessoas - tem um efeito dissonante graças à sua estética quase asiática, ressaltando também, a estranheza concebida. Porém, este mesmo efeito liga diretamente para um de meus poucos problemas com o filme que, por mais que termine ambíguo quanto ao futuro de seu protagonista, parece caminhar para um território convencional demais. Talvez, desta vez, fosse mais eficaz concluir sua jornada honrando o sentido escondido no título, pois depois de toda a violência e de toda a “direção” o que realmente move o Motorista, talvez pela primeira vez em sua vida, agora é algo mais valioso, e tirar essa lição tanto dele, como do público, parece ignorar a excepcional construção feita durante o longa.
Mas, ainda assim, “Drive” é um filme que revigora uma história que, apesar de sempre interessante, já fora reutilizada à exaustão. Já um grande candidato à clássico cult, é um projeto imersivo e brutal que vai afastar muitos durante, e até mesmo após, sua primeira experiência.