Crítica | Antes Que Tudo Desapareça

critica before we vanish

Apesar de inexistente, a linha que divide o planeta entre Ocidente e Oriente é responsável por muito de tudo que ocorreu e ainda ocorre no mundo que chamamos de moderno. Não referindo apenas à guerras e disputas políticas, mas também na maneira como produzimos, consumimos e entendemos a arte e o mundo em si, com a linguagem sendo uma barreira não apenas comunicativa, mas evolutiva.

Sendo do Brasil, estou acostumado com abraços, mas quando fiz amigos asiáticos (de diferentes países) em viagens, descobri que qualquer toque é praticamente uma invasão, ao passo que aqui consideramos hediondo comer certos tipos de animais e falta de educação comer com as mãos, por exemplo. É curioso também tentar explicar o conceito de saudade mesmo para quem tem o inglês como língua nativa, pois eles não a “tem” como nós, e mais curioso ainda como a Europa é mais próxima da Ásia do que do Brasil, mas em tese está no mesmo “lado” que nós.

E essas são apenas algumas observações minhas, alguém que não estuda linguística (como gostaria), acerca das diferenças entre culturas mesmo que de uma mesma espécie, separada apenas geograficamente. Você deve ter outras tantas, e é virtualmente impossível quantificar o quanto nossa experiência muda de acordo com onde nascemos.

Esta obra prima (ou quase) do cineasta japonês Kiyoshi Kurosawa trata justamente sobre isso, como conceitos abstratos se tornam concretos conforme pensamos sobre, e vivemos sob eles, e como compõem esta gigante e sempre crescente sociedade multicultural da qual fazemos parte. Caso “A Chegada” de Villeneuve venha à mente, sim, é um bom parâmetro, melhor ainda porque este filme também utiliza alienígenas como forma de comunicar esses conceitos e os dois fazem uma bela sessão dupla principalmente por serem feitos um em cada canto do planeta. Aliás, é uma pena que, por conta de tudo que comentei nos parágrafos acima, “Antes Que Tudo Desapareça” não tenha feito um ínfimo do sucesso de sua contraparte norte-americana.

O mais delicioso com filmes parecidos em história é ver como seus diretores se apropriam delas: se Villeneuve emprega seu realismo dramático que apaixona alguns cinéfilos e rechaça outros, Kurosawa tem um estilo mais esquisito, que não deixa de ser real em sua encenação e ambientação, mas recorre a soluções e quebras de gênero inesperadas e quase fantásticas (os efeitos menos realistas são perfeitos). Assim, um filme se torna um potente drama, enquanto o outro flerta com esses gêneros, mas figura mesmo como uma comédia/romance (não Rom-Com) que, assim como o ótimo “Creepy”, também desenvolve temas de relacionamento na base da sugestão, mas os utiliza como força principal para impedir que toda a experiência seja algo impessoal e puramente intelectual - o que me lembra um pouco “Burning” e “O Lobo Atrás da Porta”, que ressignificam tudo que ocorre com seus momentos finais.

Sem jamais sair da corda bamba, é incrível como esse é justamente o motivo da narrativa funcionar tão bem. Há certo suspense e apreensão pelo que pode ocorrer, sentimos o drama de Narumi (Masami Nagasawa) e somos convidados a compartilhar os pensamentos conflitantes de Sakurai - ambos reagem de forma surpreendentemente lógica à situação -, tudo isso enquanto acompanhamos o fascinante processo de descoberta e entendimento dos invasores. Kurosawa gosta de mato, e de planos abertos que passeiam por ambientes horizontal e verticalmente, e é prazeroso ver como os atores se comunicam com esses espaços, que ressaltam o stress impregnado nos humanos e a tranquilidade alienada dos alienígenas - e a maneira como evoluem de personalidade é igualmente fascinante, pois conversam diretamente com a ideia das diferentes experiências. Akira se torna uma psicopata alegre e violenta, Amano é uma espécie de líder arrogante, enquanto Shinji (que tem em seus primeiros conceitos adquiridos “família”) passa a ver a companheira do corpo o qual possui com uma certa ternura, que se torna amor em uma cena desoladora e das melhores do Cinema em 2017.

Talvez centrando essa discussão sobre conceitos e identidade esteja a cena que envolve o “eu”, os quais estes aliens constroem ao se apropriar dos “outros”. No caso, nós somos assim, parasitas de origem, esponjas de experiencias, mas por mais que aprendamos e absorvamos desses outros, ainda acabamos nos tornando seres egoístas, preocupados mais com o que nos acontece e menos com tudo que acontece, e se somos resilientes não é por unidade, mas por puro instinto de sobrevivência. Talvez não haja outro jeito mesmo, mas o que mais me pegou em “Antes Que Tudo Desapareça” é justamente como me fez emocionar com algo que não necessariamente concordo, pois se qualquer raça alienígena evoluída decidisse invadir a Terra, aposto que simplesmente fugiriam ao descobrir o que somos como humanidade.

Nessa que é das maiores provas do poder da arte, me pego comovido com uma frase clichê que encerra a projeção, seguida de um olhar completamente perdido que sugere que, sem o amor, nós estaríamos perdidos.

E já não estamos?

9.4

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