Crítica | Kendrick Lamar - DAMN.
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Alguns artistas querem tirar algumas músicas de sua cabeça e simplesmente as atiram dentro de um álbum. Outros tentam criar verdadeiras obras que só podem ser inteiramente apreciadas dentro de seu contexto. E uma parcela muito pequena consegue fazer os dois... ao mesmo tempo.
"DAMN." funciona facilmente como o menor, menos ambicioso, mais direto e objetivo álbum de Kendrick Lamar. Musicalmente, você não vai estar explorando músicas com um jazz bem pensado, ou sendo sedado por linhas de baixo precisas, há muito pouco das camadas de produção de "To Pimp a Butterfly" ou da imersão de "good kid...", em muitas ocasiões ele está apenas rimando sobre batidas trap, as vezes atacando outros rappers, como todos eles fazem. Em "HUMBLE" ele finalmente nos deu o single que esperávamos, capaz de provocar discussões e ainda se tornar um grande hit, e parece que "DNA" pode seguir o mesmo caminho. Você pode aproveitar a maioria das faixas sem se preocupar com suas conexões, como se fossem apenas mais uma no álbum. MAS, você também pode aumentar o valor de tudo se tentar encaixar o quebra cabeça. O quão melhor fica, e vai ficar, quando finalmente entendermos tudo que foi feito aqui? Essa é a pergunta que deveríamos estar nos perguntando.
Existem dicas muito sutis de algo que foi feito para ser mais do que parece. Se pode facilmente achar traços de grupos menores entre as faixas. “BLOOD”-“DNA”, “LOYALTY”-“PRIDE”-“HUMBLE”, “LUST”-“LOVE”-“XXX”, “FEAR”-“GOD”. E sim, muitas se conectam, mas não existe nenhuma narrativa plausível, e o sentido de cada faixa pode mudar inteiramente sobre o que ela aparenta ser. Pegue como exemplo o assombroso storytelling de "XXX", que parece ser sobre sexo (você sabe, sites pornôs e tal), mas tem Kendrick rimando da forma mais pura sobre a brutalidade na comunidade negra, o quão fodida está a América agora, desde Johnny que quer ser um rapper e não um aluno, à como a luta de Obama foi praticamente em vão. Seu flow é contínuo, muito próximo do utilizado nos anos 90, se apoiando na força para explorar seus conceitos, e em uma aparente canseira no início, que se mistura muito bem com os vocais de Bono no final.
Seu terreno ainda é a América, mas é uma pegada diferente. Kendrick tem um talento natural de se preocupar com todos, mas agora ele está duvidoso quanto a isso e está expressando toda sua raiva e reais pensamentos em muitos assuntos que antes falava de forma figurada. “It was always me versus the world / Until I found it’s me versus me.” Ele declara na última faixa, a maravilha lírica "DUCKWORTH", após atacar diretamente a FOX News, Trump (ele está na frente de um muro na capa), a polícia, e todos que tentam segurar ele - and the black artists, not the whack ones. Ele conta muitas histórias aqui, algumas extremamente realistas, outras surreais, e entre elas pontos de introspectividade que tendem a ser o centro emocional do álbum.
Na claustrofóbica e visceral "LUST" ele usa sexo como uma metáfora para alguns dos desejos e dúvidas mais profundas de um homem, enquanto sua voz luta e se estende por toda a canção, rimando sobre o começar de um dia em loop, que parece nunca terminar nem propriamente começar, um formato muito utilizado em filmes ("Groundhog Day", o melhor), mas absurdamente re-construído por ele. O uso da batida não é novidade, mas o jeito que ele a trata com seus vocais é infeccioso, justificando cada drop. Ele contrasta a faixa em "LOVE", aonde derruba qualquer rapper que tenha tentado falar sobre o amor desde Kanye em "Bound 2", e isso foi há 4 anos atrás. “If I minimize my network would you still... love me?” Ele pergunta com uma ternura sincera, que mostra que amor e rap podem ser excelentes sem todas as objetificações e engrandecimento, fazendo uma sequência de duas músicas tão poderosa e polarizantes que deveriam derrubar todas as reclamações de Drake ao longo desses anos. Ah, Zacari e seus vocais são essenciais também.
Na verdade, eu tenho pena de Drake, e Big Sean (e qualquer outro rapper de hoje), o qual ele referencia no começo de "ELEMENT". Ambos são artistas muito bons (como você pode ver aqui e aqui), mas eles estão competindo com um dos melhores de todos os tempos, que assim como um de seus maiores ídolos Jay-Z, gosta de fazer rixas com suas músicas e decidiu derrubar todos os outros em seu próprio jogo (e não é como se eles fossem o Nas também). Nas duas faixas mais comerciais, as excepcionais "HUMBLE" e "DNA", Mike Will Made It dá a Kendrick batidas insanas, secas, que muitos outros rappers usariam, mas tomam outra escala com sua performance, de um jeito que outros nunca conseguiriam, enquanto as contextualiza em conceitos extremamente importantes. Como exemplo, Kendrick só precisa de três bars para abrir a discussão para a falsidade das redes sociais.
Em “LOYALTY” ele traz Rihanna, usando como sample “24K Magic” de Bruno Mars e misturando rap com uma cantoria cadente, ele derruba todas as combinações dela e de Drake, e tiveram algumas bem decentes. Sua habilidade de entrar no sentimento de cada faixa e entregar uma performance que combine foi um grande destaque em seus últimos trabalhos, mas aqui é a coisa principal. Seu flow nunca foi tão intenso, mas as bars nunca saem de ritmo, tudo enquanto constrói o melhor para cada narrativa, e sempre que precisa ele pode esticar ou diminuir a velocidade de sua voz, que por vezes se torna seu novo alter ego, Kung Fu Kenny.
É um álbum perfeito? O ponto é que se precisa colocar tudo em perspectiva. A primeira porção (pós “DNA”, pré-“HUMBLE”) é mais lenta, e pode até se tornar monótona. "YAH", "ELEMENT" e "FEEL" funcionando muito melhor separadamente do que juntas. "PRIDE" traz um pouco da produção de TPAB em sua atmosfera agradável e as letras são facilmente umas das melhores aqui, mas não encaixa com a eloquência das outras faixas. Mas de novo, todas elas podem ser justificadas quando você encontra o auge da segunda metade, que é tão densa e maravilhosa que pode te enganar para pensar que esse é o melhor álbum de Kendrick.
Tem alguma forma melhor de terminar tudo aqui do que "GOD"? Onde ele traz um flow típico do Drake, em cima de uma batida sintética e uma brilhante atmosfera que abraçam as letras mais otimistas de todo o álbum, fala que nenhum desses rappers estão perto de serem deuses, e ele não precisa falar para que nós concordemos que ELE está. Mas sim, tem um jeito melhor e é com o simples storytelling da mencionada "DUCKWORTH", onde ele conta uma história louca demais para ser verdade, mas louca demais para não ser, e nos manda de volta para o começo do álbum. O fim para muitos parecidos com ele, crescidos nas ruas, com quem Kendrick se preocupa tanto. O sangue, "BLOOD", após os tiros.
Talvez a peça central não apenas de DAMN., mas de toda sua discografia e carreira seja a faixa mais longa do álbum. Assim como “Sing About Me”, “Mortal Man” e “Levitate”, aqui ele toma seu tempo para entregar tudo em apenas uma canção, onde ele resume o principal ponto do projeto. Pode ser a humildade, o orgulho, a lealdade, o amor, a luxúria, tudo pode estar em seu DNA e seu sangue, mas o que mais o motiva - e também uma boa parte de nós, sem nem sabermos - é uma das coisas que mais tememos, o próprio medo. Em "FEAR" ele entrega uma das narrativas mais impactantes de sua carreira, falando sobre seus medos em diferentes partes da vida. É seu trabalho mais vulnerável, corajoso e pode muito bem ser sua melhor música.
"DAMN." é ao mesmo tempo seu trabalho mais pessoal e mais distante. Ele não chora aqui, ou pede por liberdade e esperança, ele apenas tira muitas coisas de sua mente, de boas à ruins. Não está na mesma escala que seus últimos dois álbuns, mas é o seu mais próximo do pop, enquanto continua sendo tão desafiador para qualquer pessoa que queira meditar sobre o que tudo isso realmente significa.