Crítica | Parasita
Em minha crítica de “Doutor Sono”, comentei sobre como aquele era um filme que merecia ser assistido mais de uma vez e que, a primeira vista, poderia parecer uma continuação menos complexa do que o clássico que se propõe a dar sequência. Embora seja impossível ter uma primeira impressão semelhante ao assistir à Parasita, ir apenas uma vez ao cinema não é nem de perto o suficiente.
Mas afinal, quem tem condições de ir ao cinema com tanta frequência? Ainda mais se for para assistir ao mesmo filme que, no caso de minha cidade (que tem uns dez shoppings), foi exibido em apenas uma sala. O preço do ingresso parece subir todos os anos e mesmo que estudantes e idosos normalmente tenham descontos, eles são o suficiente apenas para tornar viável a ida e não para nos convidar a voltar logo assim que saímos da sessão. Logo, é uma pena que este filme de Bong Joon-ho - que desponta como um dos principais nomes do cinema mundial - vá ser tão pouco assistido em um país como o Brasil, que vive, possivelmente, a pior crise de consciência social de sua história, onde a classe alta se julga bondosa por “dividir” suas migalhas, a classe média julga ser da classe alta, e a classe baixa se deixa ludibriar e iludir pelas outras por falta de conhecimento - e condições para obter o mesmo.
Se passando em alguma cidade da Coréia do Sul em uma época que relembra a de hoje, acompanhamos a vida da família do jovem Ki-woo (Choi Woo-shik) que, ao ser contratado para ser o professor de inglês particular de uma adolescente de família rica, descobre meios de usurpar os patrões com o auxílio de seu pai (Song Kang-ho), mãe (Jang Hye-jin) e irmã (Park So-dam).
Percebam como, logo de cara, Joon-ho (que também roteiriza o projeto ao lado de Han Jin-won) já começa a estabelecer sua principal mensagem ao não nos situar exatamente em que região o filme se passa, reforçando que o que vemos ali é um problema não relacionado à nenhum lugar em específico, mas ao capitalismo em si. Se por um lado fica óbvio que a dicotomia entre a vida na periferia e em mansões de luxo é o tema central trabalhado pelo roteiro, são as sutilezas e conexões, que só podem ser completamente apreciadas quando revistas, presentes aqui e ali nas falas dos personagens que tornam a narrativa em um retrato muito mais complexo não apenas da sociedade, mas do próprio comportamento humano.
No porão que a família Kim chama de casa, o sol praticamente não penetra nas janelas e tudo parece estar mofado, como reforçado pela palheta esverdeada (que se tornaria presente em outro ambiente chave, mas o qual não posso comentar), e onde todos os espaços parecem completamente obstruídos, causando uma claustrofobia que apenas não se torna maior por conta da vivacidade que Lee Ha-joon constrói o set. Pessoas vivem ali, é impossível dizer que não.
As interpretações também são essenciais, pois se frequentemente Joon-ho enquadra todos como se apertados em cantos ou em corredores estreitos, há um calor inerente àquelas pessoas que, após tantos anos, já aprenderam a lidar com a situação. Em uma cena digna de pena, um personagem, conformado com a vida que lhe fora permitido, admite que prefere se sentir seguro do que tentar mudar.
Como na caverna de Platão, como saberia ele aonde poderia chegar quando seus limites foram sempre muito bem impostos?
Já no outro lado do espectro, vemos como o dinheiro parece esterilizar a mente daqueles que o possuem, e nesse ponto a casa tratada como obra de arte pela família Park surge como um ambiente vasto e vazio, que Joon-ho apresenta com simples, mas perfeitamente situadas tomadas onde a câmera desliza em “L”, se aproximando e se afastando de cômodos e corredores que, por mais utilizados que sejam - e a habilidade do diretor em comandar seus atores para irem e virem, subirem e descerem, é notável -, parecem sempre estar limpos e polidos.
É um ambiente que reflete o estado de seus personagens: em uma cena, o “gentil” Sr. Park (Lee Sun-kyun) comenta sobre a inabilidade de caseira da mulher apenas para, quando perguntado sobre se ainda assim a ama (como se uma mulher que não cozinhe ou limpe não seja digna de amor), responder que “sim… vamos chamar de amor”. Em outras tantas, a inocente Sra. Park (Cho-Yeo Jeong) convida, com carinho verdadeiro em sua voz, os empregados para comparecer à festa do filho, mas faz questão de frisar que receberão ao comparecer. Provavelmente não faça por mal, pois nem mais sabe, ou não se importa em saber, que este é um comportamento desprezível. Assim como, é claro, a fixação da família com a América que vai desde o idioma às fantasias de índio.
O fato de não termos um vilão é outro acerto do roteiro, que jamais culpa as pessoas pela alienação que vivem por conta de suas respectivas bolhas sociais. Vale muito, neste caso, comparar as famílias, pois se ambos os pais representam o centro de liderança e tomam as principais decisões como em qualquer sociedade patriarcal - além de despertarem tanto simpatia como desprezo -, são as mães que fazem as casas - literalmente - funcionarem.
E apesar de Lee Sun-Kyun convencer como um homem não desprovido de emoções, mas anestesiado com a própria vida, é Song Kang-ho que parece sempre se encontrar quando trabalhando com Joon-ho, dando emoções conflitantes e verdadeiras à um personagem aparentemente tão rústico. Enquanto às esposas, a personalidade insossa daquela interpretada por Jang Hye-jin é um contraste perfeito à afabilidade da sra. Park. Já os meninos são diretamente ligados a arte (atenção na pedra), com Choi Woo-shik representando tanto o primeiro traço de ambição da família como o último, adicionado à uma mistura de desespero e esperança. Enquanto as meninas, por mais que diferentes, acabam sendo os membros mais quietos de suas respectivas famílias, pois, bem, são meninas e o mundo é machista, mas se uma não faz nada a não ser se apaixonar, a outra dá todos os indícios de uma sociopata fria e calculista.
Fotografado com maestria por Hong Kyung-pyo, que teve papel essencial na construção do set por conta da importância da posição do sol, Parasita consegue flutuar entre dois universos esteticamente diferentes de forma suave, muito também graças à edição evocativa e comparativa de Yang Jin-mo que, em um momento brilhante, faz questão de relacionar como a merda que desce do banheiro de uma família acaba inundando o de outra. E a escolha de música clássica se mostra genial ao representar os diferentes tons apresentados na narrativa, sendo cômica em cenas onde não deveríamos estar rindo justamente por abraçar a grandiosidade de composições complicadas, e se afunilando e distorcendo em outras onde somos imersos em um verdadeiro filme de terror.
Dito isso, e por mais que os aspectos técnicos já sejam o suficiente para qualificar este como um dos melhores filmes do ano, é a forma como Joon Ho os orquestra em prol de sua história que o transformam em um dos trabalhos mais memoráveis desta década. E digo isso mesmo não tendo sido enfeitiçado pelo longa como tantos outros colegas, mas sabendo que seu impacto e influência devem reverberar nos anos a seguir.
Horas, se eu sentar aqui, escrevendo esta crítica, e dizer que fiquei atônito ao sair do cinema, seria uma mentira, mas, novamente, talvez coloque essa falta de surpresa no fato de ter assistido ao longa apenas uma vez e não poder aproveitar por completo todos os seus elementos, mas, mais ainda, por identificar com facilidade maior do que gostaria os temas presentes. Nesse sentido, Parasita não é mais original que O Expresso do Amanhã, do próprio Joon-ho (mesmo que seja inegavelmente superior), e suas alegorias com as partes acima e abaixo da sociedade se relacionam diretamente com Nós de Jordan Peele, lançado no início do ano. Não seria errado dizer que basta adicionar alguns temas de Que Horas Ela Volta e a acidez de A Criada que conseguiríamos visualizar esta obra por completo.
Talvez não falhando, mas confundindo (pelo menos a mim) apenas com algumas resoluções inexplicadas e quase implausíveis, ainda mais a primeira vista, Parasita é mais um atestado do talento de seu realizador, e deve marcar época como um dos grandes filmes de nosso tempo. Feito com maestria, e pensado com delicadeza, é um filme que vai desafiar tanto suas crenças sociais como sua crença no que está na tela até o último segundo, terminando com um desfecho que constata que, muitas vezes, “decidir ficar rico” é apenas o primeiro passo para ver como isso é praticamente impossível em um mundo onde os verdadeiros parasitas sugam seu futuro antes dele começar.