Crítica | O Diabo de Cada Dia, da Netflix
Um dia vou entender a lógica dos filmes que bombam na Netflix.
“O Poço” é medíocre, o tal “365” dias é uma versão piorada de “50 Tons de Cinza” e esse “O Diabo de Cada Dia”, baseado no livro de mesmo nome de Donald Ray Pollock, é o que acontece quando um diretor ainda tentando encontrar sua voz pega uma história grande demais em mãos.
Em mais de duas horas de projeção, vemos uma série de histórias cruzadas em uma pequena cidade de West Virginia, se iniciando após a Segunda Guerra e durando aproximadamente 20 anos, onde diversos personagens tem suas vidas entrelaçadas e regidas por sua relação com a fé. Apenas falar o que acontece no filme seria um “spoiler”, então é melhor que saibam pouco, apenas que o principal tema é a religião, e a principal recorrência é a violência.
Trabalhar com estruturas pouco convencionais não é algo fácil, ainda mais com uma história tão complexa como essa, que apresenta conexões quase implausíveis, o que exige um controle completo da direção afim de impedir o projeto de se tornar confuso. Campos faz um bom trabalho em apresentar as várias facetas, mas lhe falta criatividade e estilo para conectá-las - a exceção fica por um raccord próximo ao fim que conecta o protagonista a seu pai em uma situação que ambos viveram. Fotografado por Lol Crawley com uma paleta enlameada que reforça sua desolação e editado com cuidado por Sofía Subercaseaux, a impressão é que fala a Campos certeza de que tipo de filme ele procurou fazer, sendo que o longa é continuamente um drama sem emoção por conta da distância que ele nos coloca do protagonista, por vezes um suspense visualmente pouco explorado e sugerido, e por outras um terror escatológico com sangue de menos para os aficcionados. A própria narração, do autor do livro, nunca é explicada ou justificada, e acredito que o longa se beneficiaria consideravelmente de sua ausência.
Nas mãos de Tarantino, teríamos um filme hilário, nas de Scorsese, algo ironicamente trágico, se fossem os irmãos Coen, seria um filme sufocante. Talvez seja realmente injusto comparar um cineasta tão jovem como Campos com os recém citados, porém, seu filme claramente evoca elementos de todos, sem acertar exatamente em nenhum.
Apesar de tudo isso, não considero este um filme ruim, pelo contrário, até. Tecendo um comentário claro sobre como a fé corrompe, vemos uma série de personagens tendo seus destinos determinados por ela, sempre em uma nota ruim. Justamente a única pessoa que a renega, por saber da dor que causa e lhe causou, é quem mais sofre por viver em um meio cego por um Deus que não responde com ações, e sim com silêncio. Alguns ensurdecem com ele, outros se calam, muitos se perdem, o pobre Arvin Russell, interpretado com intensidade e propriedade pelo (Homem-Aranha) Tom Holland apenas se defende. E de novo. E de novo.
Contando também com o talento de Robert Pattinson encarnando a face mais odiosa da igreja, o longa não contém performances ruins, por mais que a falta de substância e imponência das personagens femininas possa incomodar. Mas afinal, por mais situado em sua época que seja, “O Diabo de Cada Dia” não deixa de ser um filme sobre o mundo hoje, e ele continua desigual e perigoso para as mulheres. Ao menos Eliza Scanlen, como a irmã de Russel, mostra talento em sua introspecção, ao passo que Riley Keough é a peça central do núcleo mais doentio do longa, mas consegue passar todo o medo confinado pelo horror da vida que vive - e a cena onde ela analisa os “souvenirs” dos crimes com o marido é particularmente perturbadora e reveladora da índole da personagem.
Com um final chocante, mas menos catártico do que deveria ser em uma história tão carregada, a impressão é que vamos de pouco lugar, a lugar nenhum, sendo que toda a violência e dor apresentadas em tela, por mais intrínsecas que sejam da natureza humana, quando não postas lado a lado com os também presentes atos de bondade, tornam o filme uma experiência unilateral e pouco verídica.