Crítica | Trágica Obsessão

o vertigo de brian de palma

Apesar de dedicar boa parte da carreira à Alfred Hitchcock, de Palma nunca se aproximou tanto como em Trágica Obsessão


Algumas raras vezes nos mais de 140 anos de história do Cinema, o título brasileiro traz algo de interessante para a assimilação de um filme.

Apesar da brilhante e assombrosa capa, descrever o que vemos no primeiro grande filme de Brian de Palma apenas como obsessão não parece lhe fazer jus. Amaldiçoado pela culpa e obcecado com a possibilidade de voltar a ter a esposa em seus braços, Michael embarca em uma jornada que poderia ter apenas um final quando sua origem já surge corrompida. A questão é que, talvez de Palma reconheça logo cedo em sua carreira, que toda obsessão só pode levar à tragédia.

Ao menos foi isso que o Cinema lhe ensinou.


UM CORPO QUE SOFRE

Talvez meu sub-gênero favorito no Cinema, a ponto de superar até mesmo todos os gêneros “estabelecidos”, seja o interminável e fascinante cânone de Um Corpo que Cai (1958), obra prima de Alfred Hitchcock e que, como muitos outros, defendo como obra máxima também do Cinema.

Inatingível como a idealização criada por seu próprio protagonista, Vertigo (contrariamente, odeio o título brasileiro) despertou em cineastas como de Palma uma obsessão perfeccionista ao longo dos anos que rendeu, no meio do caminho, diversas obras primas. Muitas focando no suspense, outras tantas nos duplos, mas poucas resgatando aquilo que talvez seja sua característica mais importante. Trágica Obsessão, portanto, é primeiramente um drama, e talvez o que mais se aproxime de mimetizar tudo que ocorre no filme de Hitchcock - não apenas nos temas, mas em um espelhamento que o torna quase uma refilmagem.

E de Palma, que logo embarcaria em sua jornada maneirista, aqui evoca o clássico em toda sua composição. Michael não aparenta ser um homem falho como tantos heróis dos anos 70. Ele estranha as atitudes dos colegas de traírem as esposas de maneira tão descarada, e se comporta mais como um homem dos anos 40, confortado em uma vida comum e sem prazeres. A atmosfera, não poderia ser diferente, faz o trabalho de construir o mundo da maneira que ele o enxerga, sem nunca evidenciar que vemos por ele, como em outros clones de Vertigo. Tudo cinzento, planos cadenciados, olhares cansados.

Acaba sendo quase mágica, portanto, a sequencia onde ele entra na igreja - outro tema tão recorrente em Hitchcock - e, ao explorá-la com o olhar, a câmera passeia de maneira subjetiva por todas as suas entranhas, como que descobrindo um mundo novo capaz de provocar ao menos alguma mudança em seu estado de espírito - algo que a música clássica acompanha, e que seria referenciado em Seven, décadas depois. Obviamente, só poderia ser na basílica Italiana (terra de outra inspiração de De Palma, Michelangelo Antonioni) que Michael re-encontraria a esposa, uma mensagem nada sútil que sugere um milagre, mas tratada de maneira tão doce por de Palma que queremos acreditar que o título é na verdade outro - a sósia da falecida ainda comenta sobre uma pintura que esconde outra, e sobre a escolha entre descobrir a figura que há por trás ou retocar a que está na frente. Esta, mais bonita, mais perfeita.

A partir dali, qualquer letrado em história do Cinema saberia onde tudo iria levar. A obsessão artística escolheria sempre o resultado final, a idealização, a custo de qualquer maravilha que pudesse haver escondida.

Ali, Michael deixa de sofrer ao escolher, curiosamente, a tragédia.


UM CORPO QUE ENGANA

David Fincher, um dos meus cineastas favoritos e outro filhote de Hitchcock, sugere em entrevista que Vertigo deveria ter sido feito do ponto de vista “dela”, e não dele. Permito-me discordar, e Trágica Obsessão reforça o acerto da obra em que se baseia.

Conforme tudo caminha para um caótico final e descobrimos o esquema por trás (de novo, o filme que mais mimetiza Vertigo), fica claro que falamos sobre ela, e não ele.

Mesmo em um filme que não abraça o modernismo - ou seja, não necessariamente nos coloca nos olhos do protagonista e viola nosso olhar junto ao dele - fica claro que a idealização deve ser sempre observada, seja por olhos obsessivos, ou por intenções que a impedem de se tornar verdadeira, pura. E talvez as falhas de Michael então apareçam quando este apresenta a casa para a reencarnação da esposa. As janelas indicam um externo branco, quase que inexistente, como se vivessem um sonho fabricado pelo próprio com o intuito de apagar a culpa que carrega. A mesa de jantar os separa, a casa, quase como que em O Desprezo (1964), que deveria unir-los, apenas destaca o que já sabíamos previamente: por melhor que seja feita a nova pintura, ela não passa de superfície.


UM CORPO QUE (NUNCA) VOLTA

Em um plano ou outro do terceiro ato, o filme chega a me evocar O Exorcista (1973), e definitivamente traz certos temas de Rebecca (1940). Um isolamento provocado tanto pela cidade que parece oprimir seus personagens com um céu nublado persistente, e uma assombração que segue viva na casa e, principalmente, dentro de Michael e Sandra - com direito ao quadro que era obrigatório em clássicos dos 40 e 50 que também entram no cânone, de Laura (1944) à Whirlpool (1950).

O filme até se restringe um pouco, tanto na mise-en-scène como no ritmo desse terceiro ato, meio que cortando um pouco do que deveria ser o momento mais intenso do filme. Mas talvez toda a construção para esse final seja tão emocional e psicologicamente exaustiva - evocando, definitivamente, a maneira como Antonioni trabalha o tempo - que queremos apenas o fim de todo aquele sofrimento.

Provavelmente seria um final mais romântico caso Sandra fosse apenas uma farsante apaixonada por sua vítima, e mais emocionalmente aterrador caso a tragédia fosse única e exclusivamente a constatação de que sua esposa jamais voltaria, mas o que o final de Trágica Obsessão provoca é uma sensação amarga, de que a jornada de Michael poderia ter apenas um final quando sua origem já surge corrompida.

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