Crítica | Vivo Ou Morto (2025)

É Preciso SUJAR AS MÃOS

Continuação de Rian Johnson mostra seu potencial, e também sua conivência


Por conta dos acontecimentos nas últimas semanas, o assunto cinematográfico do momento é a compra da Warner pela Netflix, e como isso sinaliza mais um agouro do estado de Hollywood.

Poderia até dizer que tal agouro não necessariamente é novidade, e que atinge apenas a própria Hollywood, e que o cinema é mais que Hollywood, mas isso seria ignorar o projeto de exportação colonizadora encabeçado pela empresa, não apenas no que tange o cinema, mas no que tange algumas faculdades psicológicas essenciais para a existência do cinema como experiência e como indústria.

A tal estética Netflix é muito mais do que uma estratégia de venda, mas um meio de sequestrar e reprogramar os métodos de espectatorialidade de quem assiste às produções da empresa. O objetivo não é artístico nem comercial, mas comportamental. E esse é um problema que, possivelmente, tenha capacidade destrutiva incalculável para o cinema. E não apenas o de Hollywood.


UMA ARTE ENCOMENDADA

Judge Priest (1934), de John Ford

Voltamos pouco menos de um século no passado, no auge do sistema de estúdios norte-americano, onde a competição era lucrativa mas a produção ainda tinha um quê de artesanal. Existiam “estéticas”, muitas vezes marcadas pela limitação (basicamente o oposto do que ocorre com a Netflix, mas vamos chegar lá), e diretores eram contratados por saberem lidar com essas limitações. Hawks filmava rápido e dentro do orçamento. Ford economizava takes para impedir que os editores mudassem seus filmes - o que até podia enfurecer estúdios, mas facilitava processos. Hitchcock conseguia driblar imposições morais com artimanhas, o que não colocava os estúdios em apuros com a censura e atraía o público. 

E foi dentro dessas limitações, e trabalhando em torno dessas limitações, e por dentro dessas limitações, que diretores, mestres de obra, se transformaram em cineastas, artistas. Foi por aí que descobriram meios de trabalhar, meios de conduzir seus esquemas de produção a modo de satisfazerem suas missões pessoais. Não é preciso muito para perceber que, grosso modo, o cenário não mudou tanto. Scorsese, Fincher, Del Toro, cineastas que se aliaram à Netflix para poder continuar produzindo e que, aqui e ali, conseguem imprimir seus respectivos estilos sem romper com a estética buscada pela empresa.

Mas essa visão otimista tem que ser tomada com muita cautela. Se O Assassino (2023) se beneficia da mistura entre o estilo esquizofrênico de Fincher e a estética de estímulos da Netflix, o mesmo não pode ser dito de Mank (2020), filme que supostamente retorna a 1940 - e mostra um tanto dessas questões industriais da qual falamos. Do mesmo modo, se Scorsese utiliza a digitalização do cinema a favor de O Irlandês (2019), ele mais do que perde a mão em Assassinos das Luas das Flores (2023), outro filme de época filmado como uma superprodução contemporânea.

E falamos, destes dois, de grandes cineastas. Não é o caso de Del Toro e de tantos outros, já completamente engolidos e desaparecidos sob o visual netflixiano. Dando nome aos bois: roteiros auto-explicativos, imagens cristalinas e brilhantes, inundação de CGI (e, muito possivelmente, IA), uma câmera inquieta que se movimenta artificialmente (a independer se o objeto filmado requer realismo ou qualquer outro tipo de abordagem), cobertura massiva de cada cena para que cortes possam ser feitos desenfreadamente, para assim manter a atenção do espectador distraído com a infinidade de escolhas.


ENCONTRANDO ESPAÇO

Eis que chegamos à Rian Johnson, cineasta de nome menos sustentável que os outros três (incluindo Del Toro), cujo grande momento da carreira foi a polêmica que dividiu fãs de Star Wars com seu Os Últimos Jedi (2017) que, após revisão da franquia, me parece o único de todos os filmes (e já perdi a conta de quantos são) a explorar ao menos algo diferente. Entre samurais com sabres de luz, mortes repentinas de vilões e mocinhos e um interesse de expandir a Força para os cantos mais inóspitos da galáxia (o plano do menino com a vassoura é tudo que poderia ter de bom em Star Wars - a recepção do plano do menino com a vassoura é tudo que tem de tenebroso em Star Wars), Johnson filmou com um quê de tesão e humanidade em um universo povoado por caricaturas e papel machê.

Seu Entre Facas e Segredos (2019) (que à essa altura não sei se ainda se sustenta, mas suspeito que sim) me parece um dos poucos filmes a abordar o primeiro governo Trump de maneira panfletária (e foram tantos) de modo que o discurso seja submetido à condução estética. O plano final, de Ana de Armas tomando café com a família rica enfurecida abaixo na varanda, pode ser uma piadoca, mas entende um mínimo de noção cênica e possui um quê de sagaz sensibilidade: se o terror da burguesia são as empregadas, imagina elas tomarem direto da sua caneca.

Mas Johnson logo teve que, assim como os cineastas acima, se curvar aos novos tempos. A continuação de Entre Facas e Segredos, Glass Onion (2022) comprova duas coisas: por um lado há ainda muita paixão pelo gênero e pela liberdade de atuar pautado por ele (vide os elencos expressivos de todos esses filmes), o que faz o cinema voltar um pouco no tempo, de volta a convenções mais inocentes, mais sinceras; por outro, a máquina é potente, e há de absorver tudo.

Eis que chegamos ao terceiro filme do que parece ser uma franquia aberta, este mais bem costurado que o segundo (que carecia de um centro para sustentar seu jogo de descobertas) embora com um elenco nitidamente inferior (tanto de intérpretes como de personagens). De cara, o que mais me chamou a atenção foi a demora para revelar a premissa básica: são uns bons 40 minutos até descobrirmos o motivo de Benoit Blanc aceitar pegar o caso (estratégia para manter o espectador engajado?). E são também os melhores 40 minutos do filme.


O VENTO NÃO SOPRA NO MUNDO DIGITAL

Éric Rohmer disse muito, em suas críticas, artigos e filmes, mas duas frases retornam com frequência. A segunda diz que, o que falta a muitos filmes, é o vento balançando as árvores. Algo que Johnson até parece querer filmar, mas que nos joga de volta à primeira frase, a qual já abordamos: todo filme é também um documento da sua época.

Podemos pegar uma cena em específico, aquela onde o padre Jud conversa com o bispo responsável por sua mudança de igreja. Ambos sentam, frente a frente, em um jardim interno, e há algum tempo, algum tipo de assentamento do momento enquanto conversam. Mas a montagem, embora até perceba, jamais se adequa ao tempo da cena. O mesmo ocorre com a lente, que distorce os fundos da tela.

Composição que é repetida quando Jud conhece Wicks, e os dois sentam frente a frente para uma sessão de confissões. O tempo entre a conversa, a maneira como cada ator diz suas falas (a imposição paciente de Brolin, a delicadeza do ritmo, e a fragilidade da voz de O’Connor, quase se curvando sempre que fala para evitar se impor, contrariando a todo momento seu passado de violência), e até a idealização da cena no espaço físico, sugerem um filme que busca, nestes primeiros 40 minutos, fazer uma reflexão sobre o tempo: o tempo narrado, o tempo vivido, o tempo conversado.

Mas ainda há ruído, ainda há a necessidade do corte, ainda há o desfoque da câmera que transforma o cenário em plano de fundo. A encenação segue sendo centrada no eu - inclusive, por boa parte do filme tive a impressão de estar vendo algo com zoom 1.5.

Podemos pensar na cena final, onde Blanc explica o que ocorre, tomando o lugar de Wicks e ordenando a todos que se sentem. Uma outra maneira de mostrar a comicidade das pessoas o obedecendo seria com um plano médio/aberto, com a policial de Mila Kunis (incapaz de atuar para além de só reproduzir suas falas com carão) sentando por último. Mas não, precisamos ver todos os rostos, individualmente. E é este culto à personalidade, ou o próprio star-system da Netflix, que destrói o que parece ser um filme pensado para seu cenário: precisamos de rostos, com lentes angulares, que remetem à selfies e chamadas de vídeo, professando suas falas para a câmera, para assim termos uma conversa entre ator e espectador.

Aqui e ali, Johnson consegue evitar o desague em direção aos rostos: o plano onde Jud e Blanc conversam com a floresta ao fundo, certos planos dos dois falando sobre a arquitetura gótica da igreja (e existe até uma sensibilidade arquitetônica, da tumba entre o brutalismo e o minimalismo sendo o lugar final para a fé), a referência à O Diário de Um Pároco de Aldeia (1951) (espero que seja, e não ao filme de Schrader…), e principalmente aquele onde a luz invade os vitrais conforme Jud fala. Não é bem vento, mas é algo da luz do mundo penetrando em filmes que, sejam filmados em locação ou não, são tão fabricados que tudo parece um set de filmagem. São momentos onde a dicotomia dos dois personagens: um guiado pelo espírito, outro pela razão, parece até se desenhar.

Mas, infelizmente, para cada plano interessante temos uns três inexplicáveis de tão preguiçosos e mal pensados, como aquele onde Jud se depara com Wicks na floresta (acho que o pior “jumpscare” que já vi), outro onde é socado pelo velho zelador e, talvez o pior de todos, quando Jeremy Renner ataca o velho com a foice.

E assim, um filme com algo de interessante, de um autor com alguma sensibilidade para a organização do espaço e para o peso das ações humanas (e que aqui desenvolve também para suas conexões), é sufocado, mutilado, profanado. Tudo em nome do próximo.

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