Crítica | Trilogia Vidro

OS TEMPOS QUE VIVEMOS

Trilogia de M. Night Shyamalan ainda é jovem, mas oferece reflexão valiosa sobre o mundo contemporâneo


EM TEMPOS DE MIOPIA.

Já na época do lançamento, fui contrário à percepção popular acerca de Vidro (2019), conclusão da trilogia orquestrada por M. Night Shyamalan que se iniciou com Corpo Fechado (2000) e foi reavivada em Fragmentado (2016).

Mas ao revisitar os três filmes em sequência, após alguns anos elucidativos e reflexivos, pude constatar coisas que antes não me eram acessíveis por conta de, entre outras coisas, ter uma visão crítica limitada e obscura. Daí a importância de rever filmes recentes, estes os que mais mudam nesses curtos períodos de tempo, pois conforme nos afastamos e somos capazes de aplicar um olhar distanciado e mais compreensivo do momento de seu lançamento, podemos ver para além dos vícios de época e participar da assimilação destes filmes enquanto ocorrem - com clássicos, a questão é sempre olhar para o passado.

Algo ainda mais latente nestas revisões porque a trilogia de Vidro é, entre muitas coisas, sobre as mudanças proporcionadas pelo tempo e seu impacto em diferentes escalas - tanto a individual como a coletiva. Se em Corpo Fechado vemos David Dunn em meio a um relacionamento deteriorado por sua depressão, a qual a crença diegética do filme termina por curar, em Vidro o vemos lamentando e relembrando a esposa, morta há anos elípticos por conta de um câncer.

De modo semelhante, a trajetória de Elijah Price é contada com duas elipses importantes: a primeira o leva de seu nascimento, filmado com uma câmera que vai e volta de uma imagem refletida por um espelho, ao dia que sua mãe o presenteia com uma história em quadrinhos. Anos depois, crescido e interpretado por um empenhado Samuel L. Jackson, Elijah elucida com eloquência o apelo de um rascunho feito por um grande cartunista (fictício), e mais além revela considerar as histórias em quadrinhos uma forma de arte que resgata e preserva o passado, conforme vemos hieróglifos e desenhos egípcios na parede atrás de sua escrivaninha.

Para ambos, protagonista e antagonista, a passagem do tempo tem caráter revelatório que, em outros filmes de Shyamalan, geralmente é delegado a propriedades da imagem (o vidro, a água, a televisão, a câmera de vídeo). Para Dunn, é a revelação de seus poderes e de sua vocação. Para Elijah, é a revelação dos motivos de sua existência - o maior elogio que o filme, em sua bela diegese, poderia dar ao universo dos quadrinhos.

Avante a Fragmentado, filme lançado dezesseis anos após Corpo Fechado e que se revela uma sequência apenas por conta de uma cena pós-crédito (sentado olhando televisão, Dunn revela algo que a Marvel e seu planejamento decenário jamais poderia), o tempo segue sendo tema, mesmo que agora de maneira externa à diegese. Ainda há a importância dos flashbacks que revelam a origem de Kevin e os abusos sofridos por Casey, mas a maneira com que o filme aborda as mudanças do tempo são mais percebidas na análise comparativa entre os filmes.

Se o Blade Runner 2049, pra usar de exemplo, busca emular o estilo do original e com isso faz os 35 anos parecerem menores, Fragmentado em momento algum tenta se assemelhar a Corpo Fechado. Pelo contrário, é seu próprio filme, tem sua própria ideia cinematográfica, e faz os anos 2000 de quando o original foi lançado parecerem um passado analógico e granulado distante, o que me permite propor um exercício de imaginação.

Tomamos como objeto de reflexão o Super Homem e sua descoberta pela sociedade contemporânea. Nos anos 50, pouco após sua estreia nos quadrinhos (em 38), era necessário ou ser salvo por ele ou testemunhar um de seus atos heroicos para que a lenda se tornasse mais do que um boato. Era necessário, portanto, ter um salto de fé em acreditar que um homem voador e super poderoso vestindo cueca por cima da calça de fato existia, algo que os muitos hoaxes documentados comprovam: era o caso.

Já à época de Corpo Fechado, ou talvez um pouco antes da internet, as câmeras de vídeo ofereciam uma comprovação mais móvel e fidedigna - e os efeitos visuais ainda eram rudimentares demais para se passarem por reais o suficiente. Com o início da globalização, da transmissão ao vivo, e da televisão por satélite, iniciava-se a era do ver para crer.

Eis que chegamos ao mundo digitalizado, aquele representado em Fragmentado e Vidro, onde todos podem gravar tudo, e o ver para crer toma um tombo: nosso primeiro impulso, mediante CGI, Deep Fakes e inteligência artificial é desconfiar de qualquer imagem que vemos.

Algo que se reflete na própria natureza dos personagens da trilogia: um dos poderes de David Dunn é justamente ter visões sobre o passado de seus personagens (apontamento do meu irmão mais novo), enquanto sua empresa de segurança tenta monitorar seus respectivos presentes - e o papel de Shyamalan ao longo dos três filmes também é marcado pelo avanço do tempo, de traficante de drogas a operador de vídeo (!). Já Kevin e suas muitas personalidades registram vlogs separados, e lutam contra a desconfiança do mundo mesmo perante provas incontestáveis de sua condição psicológica. Cabe, portanto, a Elijah Price manipular o que todos veem para então revelar ao mundo que a mitologia proposta nos filmes é real.

Chega a ser inspirador como Shyamalan acredita, vide o final do terceiro filme, que ao ver os atos sobre-humanos de Dunn e Kevin as pessoas aceitariam a verdade e não apenas as descartariam como mais uma montagem qualquer. Talvez seja possível chamar a trilogia como um todo de anacrônica, ao conectar a recepção do passado com os meios do presente, uma sociedade mais suscetível a crer com uma ferramenta onividente em mãos - um mundo ideal para Shyamalan, talvez?


TEMPOS DE CONVERGÊNCIA

Me impressiona muito como Shyamalan é capaz de conectar os dois filmes com tanta destreza em Vidro, pois entre a decupagem milimétrica, os lentos zoom, e a textura carregada de Corpo Fechado e o festim digital de Fragmentado há poucas áreas de congruência, se qualquer. No segundo filme, Shyamalan mostra o peso e as mudanças desses dezesseis anos no seu fazer Cinema, pois há um Shyamalan que vai de O Sexto Sentido (1999) até Fim dos Tempos (2008), e outro que surge após A Visita (2015), filme que rompe com características marcantes suas para poder libertar ainda mais suas ambições temáticas.

Assim, Fragmentado é um filme de textura límpida, repleto de desenquadramentos, de linhas de foco múltiplas e estranhas (sua fase DePalmiana, talvez?), de interações subjetivas com a câmera (mais latente na dança de Hedwig, mas a própria centralização dos personagens e a linha de visão de diversas cenas nos coloca como objeto sendo visto) e de uma preterição pela composição em prol da expressividade da imagem - o grande mote visual do filme, afinal, é a performance de James McAvoy. Não há nada, em Fragmentado, como a cena do jantar de Dunn e sua esposa, filmada em plano único que vai de um lento zoom Mizoguchiano até os enquadrá-los frente à bela pintura no fundo.

Se qualquer coisa, a maneira como enxergamos ambos os filmes seguem seus protagonistas: o mundo de Corpo Fechado é letárgico, o de Fragmentado é frenético. Um explora o passado como modo de reinterpretar o presente, outro é um mistério de câmara, suspensa do mundo. Um é um drama com elementos de suspense. Outro, um horror com elementos dramáticos. Ambos, em conversa com o que seus respectivos tempos pedem.

A tarefa de conectar dois filmes tão diferentes, portanto, deveria ser a grande dúvida em relação a Vidro, e não as especulações que tomaram conta do debate cinematográfico neste século 21. E Shyamalan responde tal dúvida no que mais parece ser uma espécie de prólogo: a steadicam que segue Dunn e a gopro que o filma quando confrontando a Besta contrastam e convivem com os planos minuciosamente iluminados de dentro da fábrica. É um mundo que volta a ter o peso do passado, sem perder seu caráter instável e líquido - que os dois caiam em um tanque de água no clímax é uma amarração poderosa dessa junção.


TEMPOS DE descrença

A reviravolta em Fragmentado já parecia ser uma piada-resposta de Shyamalan às errôneas concepções adotadas acerca de seus filmes, mas que se intensifica quando ele transforma o filme que todos esperavam ver (o embate entre herói e vilão) em uma espécie de introdução - esta sendo uma das grandes cartadas de um roteirista que por vezes fica no caminho de seu alterego diretor. Mas a piada se completa quando descobrimos que Vidro é, na verdade, um filme sobre os tempos malucos que vivemos.

Shyamalan, aparentemente um cara gente boa, jamais diria isso, mas ao situar a conclusão de sua trilogia de super-herois em um manicômio responde a todos que falaram em detrimento de seu cinema, mas embarcaram na patacoada dos herois Marvelistas e DCnautas dos anos 2010. Por vezes, sinto como se a doutora interpretada por Sarah Paulson fosse uma representação sua falando com os incels que defendem com unhas e dentes o projeto alter capitalista das duas empresas. No fundo, ele acredita no poder da fé e do extraordinário, mas precisa antes mostrar como essa obsessão se tornou algo ridículo.

E Shyamalan emula, nessa mesma personagem (a mais chata, de acordo com meus irmãos), tudo que apontavam sobre si ao longo de sua carreira. Todos os furos de roteiro, todas as interpretações forçadas, todas as supostas explicações mundanas para o fantástico que ele insistia em filmar. É quase o anti-Dama na Água, filme que parte do simples em direção ao fantástico, e que Paulson divida os ruivos com Bryce Dallas Howard é um detalhe que me agrada muito.

Se Fragmentado já tinha tons maneiristas (vamos chamar assim), a sensação é de que Vidro os intensifica: primeiro na relação simbiótica dos três heróis com suas cores, que dão o tom até das luzes na loja de quadrinhos e também das roupas que vestem seus entes queridos na cena final. Em outra cena, quando Kevin conduz Elijah na cadeira de rodas, este insiste em ir pelo porão (representado pelo B no botão do elevador), e um plano detalhe deste sendo apertado alude para esse formato de Cinema tão caro a Shyamalan. Nesses pequenos detalhes ele segue propondo a polimerização dos filmes passados: os cuidados de composição e cor de Corpo Fechado, no sistema expressionista de Fragmentado, resultando em um terceiro filme expansivo e abrangente.

Vidro, o filme, é portanto reflexo da posição do próprio personagem, que por meio de seu plano maquiavélico propõe tanto a quebra do inquebrável como a união do fragmentário. Completando uma trilogia onde cada filme é verdadeiro a seu respectivo protagonista e as suas respectivas patologias e crenças: a depressão e o bem em Corpo Fechado, o sofrimento e a pureza em Fragmentado, a insanidade e a verdade em Vidro.

Este último, filme para tempos malucos, onde nos dirão e repetiremos que nada é verdadeiro, nem mesmo a imagem, nem mesmo o mundo que tocamos e sentimos.

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