Crítica 2 | Ferrari
A VELOCIDADE E O TEMPO
Mann se apropria do digital e do pictórico para mitificar uma cinebiografia factual
A epítome do filme de esporte, para o fã de esporte, talvez seja quando este é capaz de sentir aquele frio na espinha que, no caso dos fãs de fórmula 1, costumava vir no domingo pela manhã.
Não peguei a época de Senna, mas lembro bem da disputa entre Felipe Massa e Lewis Hamilton, em 2008, e embora nunca tenha particularmente "ligado" para o esporte, a sensação de tomar café da manhã no antigo frio de Porto Alegre com Galvão narrando as corridas me é bem nostálgica.
O que, por si só, não geraria nenhum interesse em um filme sobre o fundador da Ferrari, vide meu também desgosto por cinebiografias Hollywoodianas. A presença de Gabriel Leone no elenco, talvez sim, mas o motivo que me fez pausar minha jornada pela história do cinema (que já dura quatro anos!) e voltar para o presente foi o nome atrelado à direção.
Michael Mann foi um dos diretores que decidi maratonar em 2024, e embora me falte a ponte entre Inimigos Públicos (2009) e este Ferrari, é interessante pensar em qual tipo de categoria devemos encaixá-lo como cineasta.
TEMPO VIVIDO, NÃO PERDIDO
A megalomania é um traço comum em Hollywood nos últimos 30 anos, e um que comento frequentemente ao mencionar os nomes de Nolan, Tarantino, Fincher e afins que parecem mais apaixonados pelo processo do que pelo cinema em si. Mann não é muito diferente no que tange a sua produtividade, foram apenas 14 filmes desde sua estreia em 1979, e muitos deles possuem também esse caráter expansivo que o cinema de ação norte-americano tomou ao longo dos anos.
Mas diferente de alguns dos mencionados, não há a impressão de tempo perdido. Entre um filme e outro, Mann parece assimilar o tempo e os tempos, e evoluir seu estilo de maneira condizente. Me chama atenção neste Ferrari como ele parece reconhecer a tendência academicista e ir de encontro a ela apenas para se afastar conforme adentramos o filme e sua linguagem. Em diversas cenas, a figura de Adam Driver é centralizada pela câmera, que gira em torno dele e o segue, sempre a uma altura perceptivelmente mais baixa que faz crescer o homem mesmo quando o que vemos é um retrato humanizante e falho de sua persona. É essa individualização pictórica tão comum ao cinema contemporâneo, uma espécie de virtuosismo DIY mesmo nas cenas mais básicas que, aliada à tendência cada vez mais onipresente de não filmar atores em planos conjuntos, torna Ferrari também um documento de seu tempo.
Não que Mann não se preocupe também com seus núcleos e microcosmos, tão comuns e fundamentais em outros de seus filmes (Profissão: Ladrão, Fogo Contra Fogo e Colateral), colocando Driver e Penélope Cruz lado a lado na cama em um plano tirado de Cenas de Um Casamento (1974), e remetendo até mesmo a um Fleischer (para ser contemporâneo, um Zahler) na cena da família que é despedaçada segundos depois no fatídico acidente. Inclusive, é tocante e fatalista na mesma medida como a cena é semelhante àquela que mostra Ferrari com seu filho e sua amante: em uma, a construção do carro e da paixão idealista pela velocidade, na outra, a paixão consumada na prática e a desconstrução da vida.
Li um ou outro comentário sobre o uso de CGI nessa cena em específico, um CGI descarado e que é usado para acentuar o caráter gráfico do acidente. Não tendo conhecimento prévio sobre, a cena pegou eu e minha mãe (que acompanhava comigo as manhãs de Fórmula 1) de surpresa, o que me fez refletir também sobre o caráter mitológico do filme de Mann. Além da maneira como filma a figura de Adam Driver, Ferrari me parece ser uma cinebiografia menos interessada em uma glorificação vazia, e mais em tornar visto algo não visto. Não a tal "história não contada", mas talvez a "história esquecida". Daí o virtuosismo, as cores vibrantes, os planos imersivos dos treinos e corridas e mesmo o CGI escancarado compartilham essa vontade.
E voltamos para questão do esporte, para questão da paixão. Ferrari, o homem, obcecado por velocidade a ponto de sacrificar vidas (nunca a sua), é nada mais que um homem preocupado em deixar uma marca em sua passagem pelo tempo. A cena final, dele promovendo uma conversa conciliadora entre os dois filhos, o pequeno que segura sua mão e o falecido que assombra sua memória, denota toda essa preocupação. Piero Ferrari, ainda vivo e vice-presidente da empresa do pai, é o desfecho final para o homem, o filme e o mito.