Crítica | As Golpistas

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Sendo sincero, não pretendia escrever sobre este filme.

Próximo do final do ano e da década, estamos em uma maratona interna para enumerar os melhores filmes de ambos os períodos (o que inclui ver dezenas de obras que passaram na época do lançamento e rever outras dezenas que merecem ser revistas), além também de estarmos preparando as muitas mudanças que devem vir a vigor em 2020. Por isso, é apenas normal que um ou outro filme, ainda mais quando não assistidos em cabines de imprensa, não despertem o mesmo interesse de serem analisados que outros. Porém, ao descobrir que este é apenas o terceiro longa de Lorena Scafaria e sabendo de sua imensa popularidade no circuito de premiações, decidi colocar meus dois centavos na questão. Afinal, se não valorizarmos as poucas diretoras que conseguem espaço em Hollywood, como podemos exigir maior representatividade em nosso próprio país?

E este pequeno comentário social não é avulso, pois “Hustlers”, ou seu terrível - e machista - título brasileiro “As Golpistas”, serve como uma versão feminina de dois longas recentes interpretados por homens e dialoga diretamente com o papel marginalizado da mulher na sociedade contemporânea. Apresentando o estouro da bolha de 2018 que tentamos entender em “A Grande Aposta” do ponto de vista de um grupo de strippers, Scafaria constrói também uma espécie de “Magic Destiny”, substituindo o Mike de Channing Tatum pela personagem interpretada por Constance Wu que, iliciada por Jennifer Lopez - naquele caso, Matthew Mcconaughey -, tenta ganhar a vida expondo seu corpo por dinheiro.

Logo de cara, a química na relação entre Wu e J-Lo desponta como o núcleo principal da projeção, e a diretora se mostra competente ao sempre enquadrar a segunda como mais alta que a primeira, justamente para demonstrar sua posição de “mãe” e/ou” “chefe” do grupo. Isso pode ser visto logo na primeira cena onde contracenam juntas, onde Lopez abre um espaço dentro de seu gigantesco casaco de pele como uma mãe canguru faria com um filhote recém acolhido. Dado o fato de que ambas as atrizes tem o mesmo tamanho, este é um feito técnico simples, mas consideravelmente eficaz na forma como enxergamos a relação das duas, e é inteligentemente cômico que haja, inclusive, uma piada onde Lopez sugere para a protegida que um dia se sentirá mais confortável usando um salto mais alto.

Mas as habilidades de Scafaria saltam os olhos mais de uma vez - e a fotografia de Todd Banhazl pode não ser brilhante, mas faz um belíssimo uso do roxo e do dourado, essenciais para a construção das personagens e do mundo onde vivem -, seja comandando as intensas e sensuais cenas de dança ou construindo uma quantidade considerável de planos sequência onde a câmera (em steadicam) segue suas personagens, as centralizando em meio a misé-en-scene e evidenciando a confiança com que se portam nas mais diversas tarefas. Do ponto de vista dramático é um trabalho exemplar, que faz jus ao título original por nos apresentar aquelas mulheres como verdadeiras batalhadoras, donas das próprias vidas e que não se curvam a ninguém - e nos poucos momentos quando o fazem, sentimos o impacto que tais ações tem em suas psiques.

Ou bem, quase sentimos, pois o que impede “As Golpistas” de realmente figurar entre os melhores filmes do ano é seu desorganizado e desordenado roteiro que, talvez, prove que Scafaria é mais promissora por trás das câmeras do que empunhando a caneta. Eu contei ao menos três cenas idênticas em uma boate onde uma das strippers aponta para suas amigas que recém chegaram e a câmera faz o mesmo movimento para uma entrada triunfal, além de ao menos três versões novas de videoclipes - todos muito bem dirigidas, é verdade, e que evidenciam o excepcional trabalho de edição de Kayla Emter - de Britney Spears, Usher (em uma sequência divertida, mas sem qualquer fim narrativo) e Lorde que, por mais que façam sentido na narrativa quando levado em conta o conteúdo de suas canções, ajudam a dar a sensação que o que vemos não é um filme, mas um emaranhado de sequências musicais. Além disso, a decisão de ter o longa narrado pode parecer essencial para seu entendimento, mas a entrevista de Destiny à jornalista que escreveria o artigo, que daria origem ao filme, além de ser um recurso batido (“Jackie” fez o mesmo poucos anos atrás, também com pouca eficácia) não parece adicionar nada de novo às personagens. Estas, que são um dos principais atrativos do longa, mas que conhecemos de forma apenas superficial e isso é uma pena dado o talento quase uniforme do elenco.

Contando com as cantoras Cardi B (que interpreta, literalmente, a si mesma alguns anos atrás) e Lizzo, e com ex-estrelas teens Keke Palmer e Lili Reinhart (esta muito deslocada), Scafaria se mostra eficaz na direção de seu elenco ao dar espaço para que todas brilhem - mais uma vez o trabalho de edição é fundamental ao tornar as cenas dinâmicas, mas nunca confusas mesmo com um grande número de planos/contra planos -, e consegue mostrar apenas o necessário de suas principais estrelas (e um pouco a mais de outras coadjuvantes) para que compremos a veracidade de suas profissões em tela. E se Constance Wu tinha um material melhor para trabalhar em “Podres de Ricos”, aqui a atriz quase consegue adicionar camadas que o roteiro não dá à Destiny, uma personagem que merecia ser entendida de dentro para fora, e não o contrário.

Mas o show aqui, como muitos de vocês devem ter ouvido falar, é de Jennifer Lopez, nesta que é a melhor atuação de sua carreira. Neste momento a presença da atriz na próxima cerimônia do Oscar é quase certa na categoria de Melhor Atriz Coadjuvante, e mesmo que sua personagem se beneficie de um quê de mistério involuntário oferecido pelo roteiro raso, é evidente que a postura física da atriz é essencial na composição de Ramona. Com 50 anos de idade (gostaria de usar a expressão em inglês, 50 years young, neste caso), Lopez não apenas é capaz de passar um senso de moralidade e luta inerentes, mas também de mostrar que as exibições em “Magic Mike” eram coisas de garotinho. Na sessão onde estava, a grande maioria dos espectadores eram casais e não consigo deixar de pensar na reação destes ao assistirem, de mãos dadas, o show de Ramona (que seria um título brasileiro consideravelmente melhor para a produção!).

É uma pena que “As Golpistas” não seja tão ousado como muitas das sequências que proporciona, mas não deixa de ser um ótimo programa a dois que, além de propor um debate válido sobre o papel da mulher na sociedade, corrupção e, principalmente, sobre valores morais e sua relação inversamente proporcional ao apego ao dinheiro, entretêm durante toda sua duração.

Ainda assim, poderia ser tão mais.

6.8

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