Crítica | Waves

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No assombroso “Foxcatcher”, de Bennett Miller, os personagens de Channing Tatum e Mark Ruffalo têm na luta greco romana uma forma de extravasar as dores que carregam em suas vidas pessoais e que inevitavelmente marcam seu relacionamento conturbado. Naquele filme, os movimentos são retratados de forma incomoda e invasiva, tão íntimo como sexo, mas desprovido de qualquer emoção que não a vontade de derrotar o adversário para suprimir o próprio fracasso.

Em “Waves”, uma das obras mais subestimadas de 2019 e que só conferi recentemente, o roteirista e diretor Trey Edward Shults utiliza o mesmo esporte para comunicar um número de emoções diferentes e que conseguem, inacreditavelmente, figurar como uma representação ainda mais incomoda de um dos esportes mais antigos da humanidade.

Numa das tais cenas, o personagem de Kelvin Harrison Jr. é pressionado contra o chão. Derrotado, invadido, desesperado. Naquele momento, em um torneio intercolegial, aquele jovem demonstra toda a dor da comunidade negra e os anos de repressão que culminam no principal tema abordado pela narrativa. Como diz Sterling K. Brown em determinado momento: se você é negro, não se pode dar o luxo de ser mediano.

É essa filosofia que permeia a doutrina quase militar com que Ronald cria o filho Tyler, um jovem atleta de ponta que divide seu tempo entre uma rotina de treinos pesada e um relacionamento abusivo com a namorada Alexis - interpretada por Alexa Demie. Obviamente, tamanha pressão em um jovem passando por mudanças tão uniformes como as ondas que dão nome ao título - e que são brilhantemente pontuadas pela música eletrônica pulsante que Trent Reznor e Atticus Ross se certificam de vir em composições onduladas (se algo assim existe) - só poderiam resultar em uma resposta emocional proporcionalmente intensa, algo que Harrison Jr. passa com uma veracidade que torna difícil de assistir em boa parte da projeção.

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Sem jamais deixar seus sentimentos aflorarem, o que vemos é a mesma repressão que tanto prejudicava o jovem Chiron em “Moonlight”, e que faz com que Tyler tenha explosões de raiva que nos deixam mais assustados pelo que pode fazer a si mesmo do que pode fazer aos outros. E Shults centraliza dois terços da narrativa a sua volta, a iniciando com um plano giratório que é repetido diversas vezes, o seguindo por uma festa em um plano sequência imperceptível, o acompanhando voyeuristicamente enquanto se masturba, treina e discute com a namorada pelo celular. Nossos olhos estão vidrados em Tyler e por mais dolorosa seja a jornada que percorre, é como se não pudéssemos evitar acompanhá-la atentos.

Retornando a “Moonlight”, fica claro como a obra prima de Barry Jenkins inspirou esta de Shults. Reparem no uso das cores, por exemplo, e como elas comunicam momentos chave da narrativa: uma cortina dividida entre azul e vermelho reflete nas sirenes que iluminam o rosto de Tyler; o vermelho no vestido de Alexis e as duas emoções que essa cor traz consigo; o cabelo descolorido de Tyler e como ele evoca a natureza de outra obra seminal de 2016, “Blonde” de Frank Ocean. E por mais que Tyler não seja homosexual, o conceito de masculinidade se prova tão ou mais tóxico para com ele e, aí, adentramos em uma quase pós modernidade, onde a personalidade deste jovem é diretamente moldada pela cultura a sua volta.

Nesse sentido, Shults se mostra um auteur quase completo ao escolher a dedo diversas faixas para momentos determinados da narrativa, passeando desde Kanye West, Kendrick Lamar e Frank Ocean, à Tame Impala, Animal Collective e Radiohead. Quando Tyler canta junto à “Backseat Freestyle” é ele deixando sua juventude reprimida pela rotina excessiva de treinos aflorar; quando “I Am a God” toma conta de sua cabeça é como se ele se inspirasse diretamente na faceta mais polêmica do hip-hop e se colocasse acima das leis de meros mortais, mesmo ele ainda sendo um; já a voz de Kevin Parker narra as ansiedades e paranoias da adolescência. Mas, de longe, o momento mais ressonante é quando a bela voz de H.E.R. é ouvida em “Focus”, enquanto Tyler e Alexis discutem pelo celular. Tudo que ela pede é foco e atenção, mas ele está cego.

E se as duas primeiras partes de “Waves” são uma jornada de auto-destruição que aquele jovem menino não consegue superar, seu ato final é centrado em torno da figura mais marginalizada da sociedade norte-americana: a mulher negra, representada tanto na mãe como na irmã de Tyler, que são quem mais sofrem pelos seus erros. A primeira por não suportar ver o destino que o filho traçou para si, a segunda por ser deixada de lado enquanto todos os holofotes estavam em seu irmão - e, quanto a isso, o filme poderia ter o nome de outra música de Kanye West. O que me leva a uma constatação surpreendente: Shults conseguiu evocar com uma força arrebatadora o papel diminuto dado à mulher negra na sociedade mesmo sendo um homem branco.

Neste terceiro ato, o sentimento de náuseas provocado pela intensidade do segmento de Tyler dá espaço para a jornada interna de cada um de seus entes por uma paz que parece tão difícil, se sequer possível, de ser alcançada. A câmera de Schults, antes frenética, se torna envolvente, curiosa, paciente, enquanto a lisérgica e hiper-saturada fotografia que Drew Daniels utiliza para empregar a intensidade da jornada de Tyler dá espaço a cores mais lavadas, que acompanham com naturalidade este momento de auto descoberta. É um trabalho seminal e que provavelmente vá deixar diversas cenas marcadas em sua cabeça, tanto pela beleza de seus visuais, como pelos seus significados.

E é aí que vemos não apenas a presença avassaladora de Sterling K. Brown fazendo o que faz de melhor, mas a dor irreparável que Renée Elise Goldsberry empresta à Catherine e, principalmente, o ostracismo usado como mecanismo de defesa pela fascinante Taylor Russell, que passa por uma verdadeira metamorfose em tela sem necessitar expressá-la verbalmente. Sua linguagem corporal levemente se torna mais fluida, seus sorrisos menos acanhados, seus olhares menos incertos e, em um dos planos mais belos que vi em um bom tempo, ela solta as mãos de sua bicicleta e encontra, por um breve momento, a paz comentada antes, rimando diretamente com a imagem que abre o filme.

Mesmo tendo escrito uma boa quantidade de palavras acerca desta obra, sinto como se estivesse apenas molhando os pés no mar de temas abordados aqui. É um filme para ser visto e revisto, comentado e estudado e que, rezo, atinja o reconhecimento que merece no futuro e me determino a reescrever sobre ele quando conseguir revisitá-lo com mais calma e estabilidade. Ambos genuinamente impossíveis na primeira vez que emprestamos nossa atenção à esta história.

E o fato de “Waves” terminar de forma positiva não o torna menos doloroso, apenas relembra a todos nós que há - ou deveria haver - sempre uma chance de redenção.

9.3

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