Crítica | Ferrari (2023)
O Amor Incompreensível
A paixão pelo perigo é prazerosa apenas para aqueles que a pilotam.
Semiótica: na cena de apresentação dos pilotos, Linda, Enzo e Alfonso De Portago estão sentados sobre o carro enquanto são fotografados pelos repórteres. Commendatore desvia seu foco e olha em direção às coxas da atriz, colocando rapidamente a mão na cintura de Linda e a puxando para perto de si, a fazendo deslizar pela lateral do carro, mostrando graciosamente a logo amarela da Ferrari como uma assistente desnuda do mágico impressiona com os seus movimentos. Após descobrir sobre a índole infiel do personagem ainda nos primeiros minutos do filme, o espectador questiona o ato, podendo o considerar o gesto um pouco voluptuoso demais e, casualmente, até como uma forma de flerte: a mão descendo pelo jeans colado na coxa, puxando com firmeza para juntar um corpo ao outro. O contato é, sim, prazeroso, não há como negar. Contudo, esse prazer não é a razão de executar a ação, pois Enzo Ferrari queria nada mais do que tirar o obstáculo da frente de sua carruagem, para que o cavalo negro no escudo dourado estampasse os jornais como uma quarta celebridade na fotografia.
E essa imagem é o reflexo daquilo que irá conduzir todas as escolhas formais do diretor: evidenciar um ato mecânico insensível em que o prazer não é resultado da paixão pessoal, e sim mera consequência de uma constância de movimentos. Prestemos atenção na maneira como o diretor constrói as cenas de corrida: ao invés de optar por um virtuosismo apaixonado e obviamente emocionante, ele traduz a adrenalina em um enquadramento disfórmico e agressivo, close-ups extremos em um ângulo de visão amplo de mais, imagens de drones com pouca dinâmica, tudo isso com movimentos de câmera que se reajustam bruscamente para conseguir capturar o deslocamento dos carros.
Constância; movimento; explosão. Tão sensível e benevolente quanto o movimento autônomo de um pistão. E o mais interessante dessa perspectiva violenta é o fato dela em nenhum momento ser redutora ao ponto de significar uma indiferença do diretor com sua obra ou do espectador com o filme, a paixão está subsidiada na carne, e apenas quando a perfuramos rispidamente somos capazes de nos conectarmos com ela. Mas aí a ferida se abre em um rastro de sangue, e é tarde demais para renunciar à nossa escolha.
O retrato de Enzo Ferrari como um capitalista frio, cruel e mentiroso não convence o espectador – e não é por falta de esforço – de que ele não é, antes de tudo, um apaixonado: apaixonado pelos seus filhos (o bastardo e o falecido), apaixonado pelas suas mulheres (esposa que outrora foi e a atual amante), apaixonado pelos seus carros (por aqueles que os dirigem, incluindo ele mesmo). A paixão dos pilotos por esse universo de carros extravagantes e corridas mortais percorre uma estrada sinuosa de sentimentos como adrenalina, tensão, tesão, raiva, violência e liberdade. E esse turbilhão de sensações vividas junto ao espectador carece da principal para compreender essa obsessão assassina: O amor. Onde está o amor? O amor ausente na única cena de sexo do filme, o amor que lubrifica o movimento, o amor do perdão e da paz de espírito, o amor provido pelos entes queridos agora finados.
A imensa maioria dos filmes biográficos modernos recorre diretamente a uma relação amorosa mútua como uma maneira de acessar as emoções de um espectador que já possui um certo nível de apreço pelo simbolismo daquela figura. Nesse sentido, os filmes biográficos se assemelham muito aos filmes de super-heróis, onde sua função principal é a de estimular ao máximo a audiência (seja com referências externas, sensação de nostalgia ou uma representação amorosa) para que o carinho que ela sente pelo personagem principal ser depositado no filme, agilizando o processo de identificação e transcendendo dramaticamente, por exemplo como sentir-se emocionado com o falecimento de um personagem não pela expressividade da forma fílmica, mas mera analogia ao acontecimento real.
“Em uma perspectiva materialista dialética o herói deve manter a dimensão humana, enfatizar apenas categorias psicológicas e históricas, e excluir essa espécie de transcendência que caracteriza a mistificação capitalista, cujo melhor exemplo é, precisamente, a mitologia da ‘estrela’”
André Bazin em O Mito de Stalin no Cinema Soviético
Essa constante busca para saciar a carência do espectador tem reduzido a capacidade dos filmes a um funcionalismo ilustrativo, quase como aquelas reconstituições de cenas históricas do History Channel, criando certos vícios de imagem que parecem se perpetuar como verdadeiras convenções de gênero.
O primeiro efeito negativo gerado é o da ansiedade, há uma necessidade de dilatar o recorte temporal do filme para abordar de maneira quantitativa os feitos do protagonista em vida, por exemplo, ir do início ao fim da carreira de um personagem realizando saltos temporais freneticamente. E o segundo efeito negativo consequente é o da glamourização, no desespero de evidenciar grandiosidade e genialidade em tão pouco tempo, a representação é esvaziada por completo nos restando a apegar na verossimilhança histórica, em trejeitos comportamentais e em elementos cenográficos de caracterização.
Ferrari destoa do restante da sua filmografia ao apostar em um formalismo austero e pontual
Não é uma tarefa fácil realizar um filme biográfico sem cair nestas obviedades de criação, contudo Ferrari vai na contramão (me desculpem pelo trocadilho) de toda essa leva moderna de cinebiografias e impressiona com sua proposta ousada e charmosa, sem medo de explorar ao máximo o lado sombrio das personagens como aquilo que elas realmente são: imagens fictícias de pessoas reais. Uma mera representação da história, não sua documentação imparcial e fiel. E para aproveitar esta representação em sua completude, entregamos primeiro os nossos sentidos ao prazer e à adrenalina, o amor é póstumo.
A prisão do nosso protagonista é um melodrama de cores sólidas
Esta infidelidade para com a realidade que Michael Mann expressa tanto em sua estética oitentista mais iconoclasta ou no fluxo caótico de experimentações digitais da qual protagonizou na virada de século, em Ferrari destoa do restante da sua filmografia ao apostar em um formalismo austero e pontual, uma assertividade naturalista próxima de O Último dos Moicanos (1992) mas com uma lógica mais espiritual ao expressar temas como o amor e a morte de maneira tão metafísica, criando um melodrama de vicissitudes alinhado ao luto das tragédias quase como presenças sobrenaturais em cena.
Ferrari é, espacialmente, um filme de cores, formas e estampas chamativas, mas ausência de textura: os trajes finos italianos são agora fúnebres nas arquiteturas arcaicas, na igreja, na ópera e nas casas sombrias de mármore acinzentado e carvalho escuro. Cortinas e frestas sempre fechadas, e a luz dourada do sol que escapa das entrelinhas, ao invés de transformar a beleza em ouro, captura a soturnidade em bronze. O digital cristalino e imaculado filma estes cenários planos com tanta qualidade que o sútil desfoque se torna uma neblina, uma vinheta maldita de resolução nas paredes de tons tão sólidos, tal qual a cor industrializada dos carros. Os close-ups claustrofóbicos que deformam o rosto em sentido frontal, lateral ou de trás dos ombros nos colocam sobre a perspectiva intimista de Ferrari, nunca assumindo seu ponto de vista, apenas encarando aquele rosto indecifrável e maquiavélico que Adam Driver cobre com os óculos escuros.
“Peça a uma criança para desenhar um carro, ela certamente o fará vermelho”, disse Enzo uma vez na história. Mas será que o luto, a tragédia, a busca de poder também seria desenhada em tons tão sólidos e, principalmente, tão solitários? Os antigos protagonistas de Mann recorriam seus olhares vagos e desesperados para o oceano azulado nos momentos mais reflexivos, mas Ferrari não encara o Mar Mediterrâneo: O azulado do céu remete a um Deus que tirou seu filho, enquanto o vermelho sangue de sua máquina consome sua vida dia após dia. Não há saída.
E para complementar esse visual mórbido, a narrativa cíclica da história ainda aprisiona Enzo em um limbo de dilemas e lembranças revividas, incapazes de serem superadas e resolvidas. A falência iminente da empresa em caso de derrota, a incapacidade de se afastar da atual mulher que descobre sobre a amante, o desejo do filho de ter seu sobrenome no batismo, a persistência da mãe em viver em uma vida de luto e amargura, relembrando o drama do irmão morto na Primeira Guerra e também a história dos amigos falecidos durante uma corrida são tormentos fatidicamente repetidos que assombram sua mente, e a resolução destas questões ainda é dilatada para que o clímax coincida logo após a cena do acidente, onde às escolhas desmoronam a vida pública e privada de Enzo como um castelo de cartas.
Hemingway e Mann: Encurralados pela Masculinidade
“A curva corre em sua direção. Você talvez tenha uma crise de identidade: "Sou um esportista ou um competidor? O que os franceses pensarão de mim se eu bater Behra em uma árvore?" Você trava, ele passa. Ele ganhou, você perdeu! Porque naquele mesmo momento Behra pensou: “Foda-se, nós dois morremos”. Não se engane, todos nós somos pilotos – ou já fomos. Todos temos certeza: “Isso nunca vai acontecer comigo”. Então meu amigo é morto. Desisto de correr para sempre na segunda-feira. Estou de volta às corridas no domingo. Todos sabemos que é a nossa paixão mortal. Nossa terrível alegria. Mas se você entrar em um dos meus carros - e ninguém estiver forçando você a ocupar aquele lugar - você entra para ganhar. Freie mais tarde. Roube a linha deles. Faça-os cometer o erro.”
O monólogo de Enzo após a derrota de De Portago é, com exceção da famosa cena de diálogo entre Vincent e Neil em Fogo contra fogo (1995), um dos diálogos mais interessantes para se compreender a complexidade dos personagens de Michael Mann obcecados pelo sucesso em um mundo de valores absolutos. A figura masculina nos filmes de Mann representada em indivíduos à margem ou da lei e/ou da moral, vive um conflito de interesses entre a necessidade do ser e a realidade de suas atividades: dentro desse micro verso pós-industrial de profissões perigosas e da corrida ao enriquecimento do American Dream, surge internamente uma necessidade emocional por compreensão que apenas pode ser solucionada mediante a relações não materiais projetadas na figura feminina.
Como disse Jean-Paul Sartre, “o homem está condenado a ser livre, condenado porque ele não criou a si, e ainda assim é livre. Pois tão logo é atirado ao mundo, torna-se responsável por tudo que faz.” Essa responsabilidade nas ações aprisiona o homem em si e aos seus desejos, ou vive uma vida da qual não pertence e observa as pessoas à sua volta pagarem pelos seus pecados, ou ele mantém-se solitário e convive com o peso tortuoso da existência. Uma liberdade de escolha asfixiante como o pombo preso em uma gaiola aberta. Mas em todos os casos, o homem não consegue dominar suas vontades nem tomar uma decisão definitiva, e, eventualmente, como dois objetos não podem ocupar o mesmo ponto no espaço no mesmo momento, choca-se.
Enzo Ferrari, ao longo de todo o filme, demonstra uma falta de transparência em todas as suas relações e apenas na confiabilidade entre a câmera e o personagem é que expõe sua verdadeira natureza: uma alma perseguida pelo passado, pela morte e pelo luto. E, estagnado psicologicamente, a fuga dessa prisão psicológica é refletida em uma movimentação hiperativa: se interage com diversos personagens, caminha por diferentes locações, dorme em um quarto, acordar no amanhecer, dirige de volta, atende telefones, paga as pessoas tudo em um estado de consciência semelhante ao de um sonâmbulo. E todos à sua volta que acabam por entrar nessa rotina sofrem igualmente, o melhor exemplo visual disso é Laura (interpretada por Penélope Cruz, que está impecável como a melhor atuação do filme) que vai sendo sugada para este limbo de danação, enlouquecendo fisicamente nas entrelinhas de suas olheiras, cabelos bagunçados e fala ríspida.
Esses conflitos inerentes à masculinidade me remeteram diretamente ao universo literário de Ernest Hemingway e a sua escrita impetuosa e ríspida, com personagens fadados ao fracasso ao serem amaldiçoados em provar um valor superior e hiper-masculino de coragem e virilidade. Nas tortuosas touradas, nas lutas de boxe, nos safáris exóticos ou simplesmente na vida boêmia, a maioria das histórias termina sem uma grande conclusão, sem uma redenção ou sacrifício, moral ou uma justificativa carinhosa ao leitor, tudo apenas se encerra. Cessa de repente, sem segundos avisos ou acréscimos. Aquilo que se aprende com a história é o que acontece durante, no fim não há nada. Em um momento de presença estamos vivos e no outro não.
E Michael Mann encerra a vida de seus personagens da mesma maneira impetuosa com que Hemingway as narra. Se por um lado, há na dinâmica de relação dos personagens um melodrama evidente, esse sentimento excessivo não está presente em nenhuma das cenas de acidente. Os dois principais acidentes - respectivamente, o que De Portago é contratado e o que ele morre - são marcados por um cinismo artificial que surpreende o espectador pela sua reação repentina e um tratamento protocolar.
Como na literatura de Hemingway, morrer está intrinsecamente relacionado à derrota e perder sempre é vergonhoso. Por isso, quando um carro capota e somos arremessados longe, somos reduzidos a um molde 3D tão imperfeito, com uma física estupidamente falsa e um corpo daqueles bonecos de testes de colisão balançando as articulações pelo vento em um contra-plongée quase irônico. Nossa derrota é vergonhosa e falhar sem ter culpa é ainda pior. Se ao menos o erro do homem tivesse ocasionado aquilo, ele morreria com dignidade, mas ao ser débil, impotente e incapaz de controlar a máquina e o mundo à sua vontade, torna-se submisso à cruel sorte.
E quando Michael Mann filma diretamente o carro esmagando o público inocente e a seguir da tragédia, faz questão de mostrar todos os corpos e membros mutilados em um travelling lento e paciente, finalizando em uma cabeça decepada de olhos esbugalhados, ele quer nos dizer algo muito maior do que o episódio histórico visionado. A banalização da vida humana é a maneira que o cineasta encontra de demonstrar a nossa impotência e a crueldade em torno do mecanismo que a sustenta: Quem fecha os olhos enojado e julga ser apenas sadismo do diretor, teme aceitar a realidade do como não temos absolutamente nenhum valor individual dentro da sociedade capitalista e certamente seremos facilmente substituídos na questão laboral (a única que realmente nos identifica). E a mídia, quando transforma a tragédia em espetáculo, não está preocupada com as vidas ceifadas, e sim como abutres, apenas roncam seus estômagos ao imaginar o deleite de assinar a punição para uma possível cumplicidade de Enzo.
Essa cena em específico ainda me assusta, além de todo o contexto, a reação na sessão durante o filme foi estonteante. Todos na sessão perderam o fôlego, pois ninguém espera que o cinema seja tão cruel como a vida. E o design de som, que é tão imersivo e detalhado, se cala, nos obrigando a ouvir cada soluço de desespero. É preciso ter talento para fazer um efeito especial ser realista, mas é preciso ter muita coragem para mostrá-lo de maneira tão falseada e cruel. E Mann nunca tremeu quando o assunto é puxar o gatilho.
Não tenho medo de negar que amo os filmes de Michael Mann tal qual amo também a escrita de Ernest Hemingway, e ter a oportunidade de evocar estes dois grandes mestres em um só texto é por si só extremamente recompensador. E meu real esforço não é negar este amor descomedido, e sim evitar ao máximo que ele cegue minha racionalidade.
E realmente é uma experiência sem preço poder dar continuidade à minha paixão pelo talento de Michael Mann sem ter que mentir para os meus sentidos, pois Ferrari é um grande filme com um estilo atemporal e uma visão artística que não teme não pertencer às tendências atuais. Pessoalmente, acredito que se nos concentrarmos mais na autenticidade da representação biográfica e na visão do cineasta ao invés da mera ilustração em filme da realidade, certamente teremos filmes tão interessantes e complexos como Ferrari.
“Enzo, pare com isso. Que bem você está fazendo a si mesmo? Hum, "sou um bode expiatório, sou um mártir." Quem é você? O que você se tornou? São Sebastião? Você fica aí e deixa eles atirarem flechas na sua bunda? Vá dar uma surra neles.”