Crítica | Kids See Ghosts - Kids See Ghosts
A definição de como o tempo e a insistência podem fazer bem a um álbum deve ser aplicada à "Kids See Ghosts". Não faz uma semana que a colaboração entre Kanye West e Kid Cudi saiu, mas ele já parece melhorar a cada momento.
Estamos no meio de uma das maiores e mais voláteis Yeezy Seasons de todos os tempos. Kanye West e seu time de estrelas mais uma vez emergem do exílio para providenciar o período mais movimentado do ano musicalmente, dessa vez com a inóspita Jackson Hole, em Wyoming, servindo de cenário. A G.O.O.D Music Fridays está de volta, mas ao invés de um single a cada sexta temos um álbum e, aparentemente, nenhum deles está permitido de ser ruim.
"Kids See Ghosts" é o terceiro - após o irreverente e arrebatador "Daytona" de Pusha T e o controverso e pessoal "Ye" do próprio Kanye - a sair das sessões no rancho do Sr. West. Ele funciona como um projeto do grupo de mesmo nome formado por ele e Kid Cudi, fazendo as pazes após terem uma breve briga em 2017. Se algo pode ser dito, é que não é nada parecido com nada que qualquer um tenha feito anteriormente.
Confesso que na primeira ouvida o álbum não me pegou e realmente duvido que pegue os ouvintes mais casuais. Assim como "Ye", é aquém de hits, é ainda mais experimental e mais parece um projeto de Cudi do que de Kanye. Não existem muitos traços de "Yeezus", ou "Pablo" ou "MBDTF" e até mesmo as próprias aparições de Cudi fogem um tanto do que ele vinha apresentando em seus últimos trabalhos solo. Acima de tudo, o álbum pode parecer quase monótono... isso, se você ouvir sem prestar atenção.
Cada detalhe aqui está preenchido de um contexto que ainda não conseguimos pegar de forma completa. Assim como todas as melhores colaborações de ambos ("Welcome To Heartbreak", "Gorgeous", "Guilt Trip"), "Kids See Ghosts" investiga a mente de seus dois artistas de forma direta, utilizando da excelente química da dupla para criar momentos de tirar o fôlego em uma escala quase inédita. Não é um álbum que deva ser ouvido em uma festa, ou que faça você balançar a cabeça por não acreditar na qualidade messiânica de determinada faixa, mas que a cada nova exploração vai lhe oferecer recompensas que antes pareciam impossíveis. Assim como nas melhores fantasias, é um universo que melhora conforme o visitamos e o conhecemos mais vezes.
"Kids See Ghosts" é um retorno a forma para Cudi e um dos projetos mais experimentais de Kanye West, e isso quer dizer muito.
Diferentemente de "Ye", este é um álbum que soa definitivamente mais polido. A produção possui camadas mais claras, a mixagem e interpolação de som e elementos é feita com uma orquestração mais limpa, extremamente perfeccionista. Minha conclusão é que Kanye cansou de fazer isso em seus álbuns solo e decidiu experimentar como seria deixar coisas por terminar, mas ao se juntar com Cudi (e Pusha T, em "Daytona"), ele voltou para seu auge, onde cada detalhe possui uma importância gigantesca.
Na abertura, "Feel The Love", Cudi berra de forma distorcida e ecoada que ainda consegue sentir o amor. É algo alto e impactante, dando um clima grandioso para o começo do projeto. As batidas marciais não são uma novidade em faixas de Kanye ("Jesus Walks", 2004, estamos velhos), mas elas definitivamente chegam sem avisar aqui e com o próprio as acompanhando, imitando seus sons de forma agressiva. A energia de ambos pode ser sentida sem que falem quase nenhuma palavra, sendo que o único verso da faixa, de Pusha T, que é bastante sólido (como tudo que ele faz) até mesmo destoa do resto. Após isso, um pequeno solo de baixo e guitarra (que me lembrou "White" de Frank Ocean) rega o retorno dos vocais de Cudi e então todos os elementos se misturam e é inacreditável que combinem tão bem.
Em menos de 3 minutos você é transportado para o universo deste álbum e é uma viagem turbulenta.
"Fire" é uma faixa liricamente desafiadora, mas é o momento menos engajante do álbum, com seu conteúdo sendo mais importante que sua produção. O primeiro verso de Kanye no disco pode servir como uma alegoria à seu isolamento em Wyoming devido à seus diversos problemas pessoais e conta com linhas realmente interessantes. Cudi também relata tempos obscuros, destaca a linda loucura em que sua vida se encontrava e declara no refrão que encontra pela rota que traça agora todas essas cicatrizes. Falta aqui um tanto da energia que fez outras faixas funcionarem tão bem, mesmo que sua sonoridade contribua para a construção do cenário musical do projeto.
É possível perceber o tom psicodélico que a produção caminha e ela gradualmente começa a ficar mais obscura e distorcida. "4th Dimension" é maravilhosamente produzida e provocativamente subversiva, usando de sample uma música natalina do cantor Louis Prima, com um coro fantasmagórico e batidas afetadas como fundo para versos explícitos e mundanos sobre sexo. Porém, é em "Freeee", propositalmente a peça central, que a viagem do álbum atinge seu auge. Com a participação de Ty Dolla $ign, os vocais da dupla se transformam em coros e se misturam a gritos quase bêbados que transbordam alegria e liberdade. A guitarra desenha a evolução da faixa, mas o modo como todos os elementos são misturados é uma cortesia das grandes habilidades de um dos melhores produtores do século 21. Funciona como uma espécie de espiral de cores, feche os olhos e tente enxergar a capa do álbum, é mágico.
A sequenciação das faixas é essencial, quase como uma jornada do buraco onde ambos se encontravam à auto-realização que chega na segunda metade do álbum.
É justamente por conta dessa dura jornada que, quando a auto-realização de ambos se mostra aparente, o resultado é tão impactante. "Reborn" é facilmente a faixa mais gratificante aqui. Nela a produção é mais confortável e esperançosa, baseada em cima de um belo piano e batidas cadenciadas. Kanye entrega um de seus melhores versos em anos ao reconhecer todos seus erros e mais uma vez aceitando toda a culpa por suas ações, mas ainda assim é o refrão de Cudi que rouba a cena, repetidamente falando a si próprio para seguir em frente, mas não podemos evitar em ouvir o conselho como se fosse para nós. Ambas suas performances aqui são dotadas de uma sinceridade quase vulnerável, é algo simples e bonito.
A segunda metade funciona ainda mais que a primeira, com a faixa título e sua produção fantasmagórica nos mostrando o motivo do nome do álbum. Nela ambos detalham sua inquietação de começo de carreira e suas buscas pelo status que enfim atingiram. Cudi entrega um verso metafórico e paciente, enquanto o de Kanye é dotado de uma energia revigorada, com ele soltando rimas em um flow extremamente eficiente. O refrão quase sussurrado de Yasin Bey e Cudi é poderoso e tem um efeito que dura além da duração da própria faixa.
"Cudi Montage" fecha o álbum de maneira curiosa. Utilizando o violão de um sample de Kurt Cobain, ambos pedem ao Senhor para enviá-los sua luz de forma esperançosa. O estranho fica por conta do verso de Kanye, onde ele utiliza uma bem escrita e rimada analogia sobre o ciclo de violência nas ruas, entrando novamente em aspectos mundanos para reiterar a importância da presença de Deus. Apesar de seu verso ser bom e revigorante mediante seus polêmicos comentários sobre a comunidade negra, ele é aquém do conceito construído pelo álbum, mas acredito que ele saiba disso. Ao estudá-lo com mais atenção, se percebe que o foco deste verso é, essencialmente, parte da mensagem que “KSG” quer passar.