Crítica | Weyes Blood - Titanic Rising

Como achar relevância e força de vontade para amar quando tudo o que se conhece está com os minutos contados?

Como nutrir o desejo de estabelecer relações em tempos apocalípticos? E além disso, do que adianta? Tudo que você constrói com zelo e afinco em um futuro próximo vai ser extinguido. Todo seu empenho, todas as vezes que cedeu, todas as vezes que não cedeu; todas as vezes que resolveu manter a aparência para proteger seu legado? Que legado? O mundo está acabando, nós sabemos disso e não temos a mínima ideia de como salva-lo, e a ideia de um futuro próspero fica cada vez mais distante.

Natalie Mering quer que ignoremos tudo isto. Quase nenhuma de nossas decisões são racionais, por que seria diferente em tempos tortuosos? “Titanic Rising” é uma trilha sonora para o apocalipse, a trilha sonora perfeita para se ouvir enquanto o mundo se transforma gradualmente em um lugar inabitável. Em seu primeiro álbum pela gravadora Sub Pop, a cantora Natalie Mering, conhecida artisticamente como Weyes Blood, fez jus ao contrato com maior orçamento de gravação; cordas, sopros, bonitos arpegios com timbres vintage, nenhum desses elementos sendo novidade em sua discografia, que já contava com dois álbuns de estúdio pela gravadora Mexican Summer, mas dessa vez, Natalie orquestrou talvez um dos melhores discos já feitos pela gravadora de mais de 30 anos.

A carga emocional que Mering carrega durante cada um dos 42 minutos de música é crua e genuína, o desespero narrado em “A Lot’s Gonna Change”, a incerteza e adversidade que a apavoram nos atingem em cheio em meio a um instrumental forte e de pluralidade harmônica. Ou então, a carta de despedida para um amor que já partiu dessa para outra, em “Picture Me Better”, a narrativa é sempre multifacetada e completamente envolvente, Natalie se tornou a compositora que sempre imaginamos que poderia ser.

E, também, poucas coisas no mundo são tão satisfatórias quanto ver uma perspectiva atingir sua expectativa final, seu máximo potencial; Titanic Rising é esse projeto, é o projeto da vida de Natalie, para de vez, conquistar o espaço que lhe é digno... Afinal, pouco se sabe sobre Weyes Blood no mainstrem, o mundo é injusto e a indústria musical é parcial, é a história mais velha do mundo. Dos projetos extraordinários surgem as exceções, dos timbres exóticos e canções grandiosas são feitos as “falhas” no sistema faccioso da mídia. “Titanic Rising” é esse desvio, apaixonando a crítica especializada e chamando a atenção das grandes revistas, com grande êxito em seu objetivo.

A produção “futurística-vintage” é ímpar e notável, a primeira faixa abre com sintetizadores que mais se assemelham a cordas, para depois serem substituídos de fato por arranjos de cordas. O piano martelado, marca registrada de canções dos anos 60 e 70, são parte constante e relevante da experiencia do álbum, experiência que começa desde sua capa surrealista, e de muito bom gosto, que é cenário do clipe do single ‘’Movies”, o ápice técnico e emocional do disco, que se encontra exatamente em sua metade.

Ainda acima de sua temática visivelmente apocalíptica e enigmática, “Titanic Rising” é um álbum sobre resiliência, sobre encarar os momentos mais obscuros e pavorosos com seriedade e sensatez, sem perder a lisura nem por um minuto. Sobre como deixar ir na hora certa, e sobre como não se entregar ao desespero mesmo em situações de total desconhecimento da situação.

Born in a century lost to memories
Falling trees, get off your knees
No one can keep you down
If your friends and your family
Sadly don’t stick around
It’s high time you’ll learn to get by
— https://genius.com/Weyes-blood-a-lots-gonna-change-lyrics

As influências aqui são claras como a luz do dia, um bom aglomerado de bandas e artistas renomados dos anos 60 e 70, com a malícia e vitalidade das produções da década atual. Ah, que década grandiosa que vivemos, onde temos a oportunidade de emular qualquer instrumento de produção das décadas passadas em poucos cliques, tendo apenas nossa limitação criativa como inimigo para fazer o mais difícil: não deixar o que é notório virar mais do mesmo.

“Andromeda”, segunda faixa do disco, dialoga com os principais temas do álbum ao mesmo tempo: amor, invulnerabilidade e o finito tempo que nós temos para viver bem. Notoriamente influenciada por trabalhos solos do ex-Beatle, Geroge Harrison, a progressão e elementos de guitarra lembram tão fortemente o primeiro disco do britânico. O tom impositivo que Natalie canta nessa música é outra novidade agradável, que se estende por, no mínimo, uma meia dúzia de músicas nesse álbum.

O compasso circense de “Everyday” lembra muito os melhores momentos de “Pet Sounds”, Brian Wilson aprovaria! É a música mais corrida do álbum e, sem sombra de dúvidas, também a mais positiva, mas somente na parte sonora já que as letras são um grande ponto de interrogação ao amor moderno, monogamia e crises de confiança. O primor técnico que é a última virada da música já nos diz que não, não é mais do mesmo.

Uma linda progressão de piano dá vida a balada mais bonita aqui. “Something To Believe” tem a força de um hit contemporâneo escrito por Joni Mitchel. As guitarras de slide tomam conta de parte do refrão, segundo verso, e também ponte; as semelhanças com o legendário disco de 1970 “All Things Must Pass” não param aqui, a mensagem de resiliência e superação também contidas no disco de Harrison ganham um significado revigorado e mais moderno nas palavras de Natalie.

A faixa título é uma faixa de transição, que carrega a dose exacerbada de esperança cautelosamente até águas mais escuras. “Movies” é o momento mais tenso e distópico da obra, o sintetizador arpegiado é quase uma contagem regressiva até o clímax emocional. A tensão construída pelo arranjo soturno culmina num arranjo de cordas dando outra dinâmica ao mesmo arpegio, dando outra face a música.

Enquanto as músicas vizinhas desse disco têm raízes muito fortes nos anos de ouro das baladas folk/rock, “Movies” é um tanto quanto genuína e definitivamente não poderia ter sido produzida naquele tempo. Simplesmente a qualidade técnica e tecnológica de produção não calça os sapatos necessários para fazer tal arranjo. Arranjo que é um primor técnico e uma aula de como transformar uma ideia em uma música de total imersão.

O álbum segue com a mudança de ritmo, “Mirror Forever” tem uma das letras mais pessoais e interessantes. Orientada pelos fortes timbres de sintetizadores, desta vez mais focados no grave, o baixo sintetizado consome grande parte da faixa, fazendo companhia para a percussão, que dessa vez é mais eletrônica. Weyes experimenta uma bateria eletrônica juntamente com a acústica; e não é necessário uma grande habilidade de percepção para perceber que é, sem sombra de dúvidas, a música mais despretensiosa e discreta do disco.

Taking hold of our eyes
Beauty, a machine that’s broken
Running on a million people trying
Don’t cry, it’s a wild time to be alive
— https://genius.com/Weyes-blood-wild-time-lyrics

Já na reta final, a acústica “Wild Time” é simplesmente uma fusão do folk clássico dos anos 60 com artistas alternativos de meados dos anos 2000. A seleção de timbres é simplesmente impecável, desde o arpegio que acompanha ao decorrer da faixa, como também dos instrumentos acústicos, o violão médio preenche grande parte do vazio do verso. “Wild Time” narra um futuro distópico; fome, incêndios, pânico generalizado; olhe pelo outro lado: são tempos bárbaros para se viver.

As últimas duas faixas de encerramento se completam, entre elas, e entre a faixa de abertura. “Picture Me Better” é uma ode completamente sentimental para alguém querido que já se foi, um lindo arranjo seiscentista em ¾, uma espécie de valsa de despedida. Talvez a letra mais sentimental e pessoal de todo projeto e quiçá, da artista. “Nearer To Thee” é uma faixa de transição, transição pra que? Para a música de abertura, como Natalie queria nos avisar desde o primeiro minuto do álbum, “A Lot’s Gonna Change”.

Picture us better
We finally found a winter for your sweater
Got a brand new big suit of armour
It’s time, since you left I’ve grown so much
If I could have seen you just once more
Tell you how much you’re adored
There’s no point turning more
— https://genius.com/Weyes-blood-picture-me-better-lyrics

Muita coisa vai mudar, isso é um fato. Muita coisa vai mudar essa semana, esse mês, e não preciso nem começar a comentar a quantidade de afazeres que vão deixar de fazer parte do seu cotidiano em um ano... Mering está certa, a única opção que nós temos para defrontar com nossas perdas, frustrações e contratempos, é matar no peito, com fleuma e serenidade, deixar o que acontece de ruim acontecer, absorver o máximo daquele sentimento e continuar olhando pra frente.

Natalie aprendeu com seus erros, e assim conseguiu fazer o projeto de sua vida, pela primeira vez, fora da curva.

9.2

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