Crítica | Spring Breakers
Recentemente, um amigo próximo redescobriu uma vida que não tinha há anos.
Trocou a segurança do Netflix and chill pelas incertezas da noite brasileira, jornadeando (sim, jornadeando) pelas ruas mal iluminadas de uma capital, o vento vindo de encontro ao seu rosto que, com um sorriso, conduzia com toda a alegria do mundo um patinete alugado. Ele caiu. Os machucados foram motivos de comemoração, não dor, mesmo que os dois, por vezes, estejam interligados. Talvez, jovens da mesma idade, que tenham cruzado seu caminho naquela noite, estivessem em uma jornada contrária, em busca de coisas que apenas a rotina caseira - e acompanhada de alguém especial - possa providenciar.
É sobre esse desej… não, essa necessidade de se buscar coisas que não temos no momento, que “Spring Breakers”, filme de Harmony Korine, parece se deliciar em tratar, desfrutando de toda ousadia, originalidade e falta de pudores que seu realizador - e suas atrizes - esbanjam. Curiosamente, neste filme repleto de nudez e promiscuidade, a vulnerabilidade da mente humana parece estar tão despida como os corpos dos jovens que parecem ter esquecido - ou preferido - a existência de câmeras a sua volta. Em certos momentos é como se aquelas garotas fizessem questão de se mostrar e interagir com a câmera, tornando desta - e de nós, espectadores - uma participante vip da festa. Em outros, é como se víssemos a carapaça, mas adentrássemos no íntimo de seus pensamentos, suas dores, seus anseios, seus incontroláveis desejos.
Seguindo a cruzada de quatro universitárias em busca da felicidade máxima, que só pode ser atingida em meio à loucura do chamado spring break (sim, fui irônico), este é um filme que, admito, tive preconceito e evitei por um bom tempo, apesar de estar ciente de que, anos após seu lançamento, sua recepção passou por uma metamorfose, com muitos o considerando, inclusive, um dos melhores filmes do século. Por acaso, e por falta de outras opções presentes no momento, decidi por assistir-lo e, sem saber, embarcaria em uma experiência que, em meio à todo álcool, peitos e músicas de Britney Spears, se revelaria melancólica, dolorosa e profundamente inquietante. O filme se passa na Flórida, mas seus personagens são seres do mundo.
Talvez seja difícil, em primeira estância, se relacionar com as meninas interpretadas por Vanessa Hudgens, Ashley Benson e Rachel Korine (esposa do diretor), jovens privilegiadas que estão na faculdade, mas que, ao perceberem que não conseguiram juntar dinheiro o suficiente para o spring break, decidem assaltar um restaurante e, se isso não fosse odiável o suficiente, o prazer na forma com que se gabam de seus atos as pinta como seres quase detestáveis. Já Faith, a quarta integrante do grupo, é uma jovem devota ao cristianismo e que tenta balancear sua vida de fé, estudos e festa, mas, mesmo não se envolvendo nas práticas das amigas, fecha os olhos ao defendê-las para outras colegas. “Quem, elas? Mas são meninas tão doces…”. A inocência presente na voz de Selena Gomez é quase digna de pena.
Seu nome, inclusive, é uma representação óbvia, mas que passa quase desapercebida durante a projeção: Fé, quase uma contraposição dos apelidos pelos quais as amigas são chamadas. Hudgens interpreta Candy, um doce de menina que desenha pênis nos cadernos e confunde amizade com aliciar as amigas às drogas e à exploração sexual. Benson é Brit, a loira do grupo, que tenta, de certa forma, emular a vida de uma jovem Britney Spears que surge como um símbolo de libertação e divindade para aquelas meninas. Já Rachel é Cotty, palavra em inglês utilizada por crianças para se referirem à sexo e que combina perfeitamente com a alienação à qual a personagem apresenta ao, praticamente, permitir a humilhação de seu corpo em público - ou seriam aqueles atos de uma mulher com total controle sobre seu corpo? O fato é que as três estão dispostas a tudo para se enturmarem, e mesmo quando Faith implora para voltar para casa, é como se ignorassem suas justíssimas preocupações, pois não há nada de errado acontecendo, ou melhor, nada que elas não queriam que acontecesse mesmo sabendo ser errado. Percebam, inclusive, como o filme simplesmente se esquece das duas que decidem ir embora, como se, para as amigas, tivessem escolhido a morte e não a versão hiper experiencialista de vida que lhes fora apresentada.
E é aí que entra Alien que, assim como as ex-estrelas mirins, tem em seu nome um exemplo perfeito de seu papel na narrativa. Interpretado com brilhantismo por James Franco, é justamente por ser um ser tão diferente, tão alienígena, que as jovens não podem fazer nada se não se entregarem por completo para a abdução proposta por ele. Sob camadas de tatuagens, dread-locks mal feitos, adereços brilhantes nos dentes e com uma voz tão carregada que é como se vivesse sob efeito de todo o tipo de substância, ele surge irresistível ao, simplesmente, convidá-las a passar um tempo com ele e conhecerem a sua vida que, por si só, já daria um filme. Quando Faith diz que não, ele é quase carinhoso ao dizer que ela é sua preferida, em uma cena capaz de te fazer vomitar de tão incômoda que é a situação de uma jovem, semi nua, em meio à tantos homens. Já as outras três estão enfeitiçadas, pois se Faith acreditava com toda sua fé que havia feito amizades verdadeiras com pessoas que nem lembram do que aconteceu na última noite, era justamente por essa impessoalidade coletiva que suas amigas estavam atrás.
Em maior ou menor escala, todos já conhecemos Candys, Faiths, Brits, Cottys e Aliens. Todos já vimos pessoas maravilhosas sucumbirem a tentação que é uma vida completamente contrária a sua. Todos já estivemos em situações parecidas, onde desejamos algo que não temos, ou fizemos algo que não queríamos apenas pelo medo de sermos julgados e, ou, sermos rudes. Afinal, este é um medo que, por vezes, é maior do que o da própria morte. Pois se Candy e Brit parecem estar vivendo a vida que sempre sonharam em meio à todas as paradas de Alien (que as apresenta em um monólogo já icônico) é apenas porque sabem que só atingiriam o nirvana que tanto buscavam ao caminharem uma linha tênue entre o prazer e a dor, por mais que o primeiro seja tão curto, e a segunda tão definitiva.
Percebam como passei todo o texto me atendo, quase exclusivamente, às personagens e pouco, ou quase nada, à narrativa e aos elementos que a compõem, mas, por mais que isso seja um sinal de que o filme de Korine sucedeu em comunicar sua mensagem, é interessante analisar as escolhas que o cineasta adotou e como elas influenciam a experiência como um todo.
Fotografado pelo belga Benoît Debie (responsável por trabalhos alucinógenos como “Enter The Void”) como um prisma de cores saturadas que emulam a sexualidade conturbada daquelas adolescentes, e filmado por Korine de forma quase documental, ligando pouco para coerência entre seus planos, repetindo falas em voice-overs e mostrando as mesmas cenas em tomadas diferentes, “Spring Breakers” soa, por vezes, como uma memória embaralhada de uma noite de festas. É um filme que, tecnicamente, evoca toda a incerteza e instabilidade da vida de seus personagens e, se os primeiros trinta minutos parecem vagos demais - e são -, é apenas porque ainda não chegamos aonde o cineasta queria chegar. Há também toda a implausibilidade envolvendo o ato final de violência, há o desconforto em ver meninas sendo objetificadas daquela forma, há o estilo pouco ortodoxo de Korine separando este de outros Coming of Ages e besteróis que dividem as mesmas festas como cenário. É uma experiência, indubitavelmente, complexa e desafiadora.
Em uma cena memorável onde Alien toca uma versão própria de uma música de Britney Spears, seus dedos sujos de sangue mancham as teclas do belo piano que ostenta próximo a piscina. Percebam como tal momento é um exemplo de cinema no mais alto nível. Ao centro está a interpretação de James Franco, cantando, rodeado de três jovens com máscaras cor de rosa, letras que expressam, quase por completo, as emoções conflitantes que aqueles seres vivem. Na música, Britney fala sobre ser notada, sobre porque ela e a pessoa que ama ainda são estranhas uma para a outra quando seu amor é tão forte, sobre tentar voar e falhar todas as vezes.
Corajoso na mesma medida que é perigoso e irresponsável, “Spring Breakers”, é menos sobre a falha, e mais sobre o tentar. Elas e alien, definitivamente, tentaram.