BEYOND | A Volta do Daft Punk: 5 Anos Depois
O que faz um clássico, clássico?
É difícil dizer. Podemos elencar fatores como a qualidade das composições, a relevância e influência na música, a inventividade no som ou a importância daquele álbum no presente zeitgeist. Porém, uma das formas mais simples de se considerar um disco especial, importante, um possível clássico, com o passar do tempo, é sua capacidade de unir as pessoas.
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O ano era 2013 e o Daft Punk não lançava um álbum de estúdio desde 2005, nem lançava qualquer coisa, na verdade, desde a trilha musical para TRON: O Legado, filme de 2008.
Foi quando o seguinte anúncio foi ao ar no intervalo do SNL de um sábado qualquer.
O trem do hype, de repente, era uma locomotiva imparável.
Duas semanas depois, mais um comercial.
E pouco mais de 2 meses depois, acompanhados do lançamento do single "Get Lucky" e da fantástica série de vídeos com colaboradores do disco, foi lançado "Random Access Memories", o primeiro álbum do Daft Punk em 8 anos.
Lá atrás, final dos anos 90 e no início dos 2000, a dupla composta pelos franceses Thomas Bangalter e Guy-Manuel de Homem Cristo foi responsável pela criação de um novo som e a retomada da música eletrônica no mainstream. O gênero tinha sido absorvido por diversos outros, em especial o dance e o pop, mas como seu próprio som, talvez não tivesse tido tal protagonismo desde o Kraftwerk.
A influência dos discos "Homework" e "Discovery" ecoou pelo mundo e revitalizou a música eletrônica.
Bandas como o Chemical Brothers tiveram sua parcela de mérito, mas não com a mesma veemência do Daft Punk. O EDM, como conhecemos hoje, é quase que um filho do trabalho dos produtores, que criaram música à partir de samples, loops, uma toque de virtuosismo e uma tonelada de conhecimento técnico e histórico sobre música.
"Human After All", o menos aclamado dos álbuns de sua discografia, ainda contém algumas faixas memoráveis. Flertando mais com o rock, era um passo da dupla em uma direção diferente da que eles mesmos pareciam ter feito toda a indústria seguir.
No longínquo ano de 2005, o Daft Punk já soava desconfortável com a industrialização que parecia tomar conta do cenário da música eletrônica.
E a cada ano que se passava sem notícias dos robôs, maior ficavam as dúvidas sobre o que viria a seguir.
Quando os comerciais já citados foram lançados, diversas delas pareceram sanadas:
Não, o Daft Punk não parou.
Sim, eles estão de volta e lançando novo material e um novo disco.
Esse disco parece diferente de tudo que fizeram até então.
Passam as semanas, o álbum é lançado e essas hipóteses são confirmadas. Desde a primeira audição, foi possível perceber que, sim, ainda é Daft Punk, ainda há o gosto e o toque musical da banda a cada batida, mas que eles estavam fazendo algo muito diferente dessa vez. E eles explicam na faixa de abertura:
Let the music in tonight
Just turn on the music
Let the music of your life
Give life back to music
"Dar vida de volta à musica". Isso resume muito do hiato e do que o disco vem a nos apresentar: a ideia de que a música atual, em especial a música eletrônica e pop, estão sem vida. Sem groove, sem ritmo, sem humanidade. Presa nos seus próprios vícios e produzindo hits como funcionários cansados do McDonald's montam Big Mac's numa segunda-feira.
E para contrapor esse momento, a dupla aposta numa estratégia pouco ortodoxa.
Nada de "revolucionário", nada de "super disco conceitual" com um filme para acompanhar, nada de estar no limite da inovação musical.
Vamos fazer música boa.
— Daft Punk, hipotética-mas-muito-plausivelmente.
Para tal, ao invés de samplear e remixar sons antigos, eles trouxeram para o estúdio, para colaborar com eles, alguns dos responsáveis por essa era mágica, brilhantemente groovada e melódica que foram os anos 70 e 80. Giorgio Moroder, Nile Rodgers, Paul Williams estão entre os nomes e se fazem presentes ao longo do disco de maneira muito positiva. Além dos vanguardistas, os produtores chamaram expoentes da música contemporânea como Pharrel Williams, Panda Bear, Julian Casablancas e Todd Edwards.
Toda essa mistura parece estranha. Mas funciona de maneira perfeita.
E funciona pelo objetivo que é traçado aqui: criar um disco saboroso, orgânico, dançante, para ser curtido. São 74 minutos que incluem baladas, músicas pra cantar, músicas pra dançar e algumas faixas épicas. Como o nome já diz: muita nostalgia, mas sem perder a identidade eletrônica dos robôs.
Curiosidade: o nome Random Access Memories é uma referência à memória RAM, um tipo de memória vastamente utilizada em quase todos os computadores e smartphones, que é essencial por armazenar os arquivos que estão em uso no momento. O nome "random-access", que, atribuído à memória, significa "memória de acesso aleatório", representa a funcionalidade dela como "a mesa" onde o computador abre os livros que são requisitados a cada atividade. Ou seja, se nossa mente fosse um computador, toda vez que nos lembrássemos de algo, estaríamos puxando uma "memória aleatória" e trazendo ela para nossa consciência naquele instante, sendo nossa consciência, nossa memória RAM. Genial, não é mesmo?
É uma tolice dizer que tem pouco Daft Punk nesse disco. Faixas como "The Game of Love", "Beyond" e "Whitin" remetem diretamente à cortes antigos dos franceses como "Something About Us" e "Veridis Quo". Aqui, a diferença é que os resultados são obtidos com mais instrumentos orgânicos e maior foco nas letras, ao invés da produção e experimentação.
Uma das mais esquecidas de Random Access Memories, "Motherboard", é experimental e lembra os velhos tempos dos franceses - contudo, a adição de cordas e sopro aos seus tradicionais sintetizadores dá um frescor às ideias musicais, fazendo com que possamos nos perguntar se a estilística adotada por Björk em "Utopia" não teve influência de cortes como esse.
Ainda temos alguns momentos mais acessíveis, cada um com seu próprio estilo e autenticidade. Os artistas sabem dosar perfeitamente sua produção e estilo com a verdade dos colaboradores, e isso dá espaço para que cada canção seja única.
"Fragments of Time" pode não ser tão boa quanto "Face to Face", mas é, provavelmente, uma das canções mais emblemáticas do disco, conceitualmente. Todd Edwards usa de uma inteligente ambiguidade na letra, que funciona tanto como diário de bordo de sua experiência gravando com a dupla quanto como poema sobre aproveitar os pequenos momentos da vida e não deixar de relembrá-los, revivendo-os.
Se "Fragments of Time" traz a vibe de uma noite de verão na Califórnia e soa como uma releitura que John Mayer e Stevie Nicks fariam de "Digital Love", a faixa seguinte, "Doin' It Right", mira outra coisa. Minimalista na instrumentação, dá protagonismo à união dos elementos e aos vocais de Panda Bear.
Pharrel colabora como vocalista em duas faixas do disco: "Get Lucky", o hit absoluto, e seu lado B espiritual, a super funky "Lose Yourself to Dance". Uma música absolutamente dançante, impossível de ouvir sem se mexer, involuntariamente, alguma parte do seu corpo.
"Lose Yourself" pode soar repetitiva ou simples ao ouvido desatento, mas é uma obra-prima no quesito andamento. Temos um riff matador de Nile Rodgers, uma percussão e um baixo que poderiam muito bem ter sido roubados de algum dos clássicos de Stevie Wonder e alguns dos melhores vocais de vocoder do Daft Punk.
Essas são as peças que montam esse quebra-cabeça de groove de maneira perfeita, uma remontagem dos anos 70 tão divertida, tão dançante e tão pulsante que apenas esse vídeo, que sobrepõe a canção a imagens do programa "Soul Train", pode descrever bem sua força.
Contudo, os robôs sabem que um bom disco tem suas subidas e descidas. Unindo-se às outras baladas de RAM está "Instant Crush".
A canção é um hino pronto para os fins de noite frustrados, contando com uma das melhores letras e mais emotivas performances da carreira de Julian Casablancas. É difícil citar pontos altos numa obra que está tão cheia delas, mas a maior vitória em "Instant Crush" é o quanto ela foge de obviedades. Uma faixa do Daft Punk com Casablancas poderia ter sido, facilmente, uma renovação das ideias presentes em "Human After All" somada a um Julian pujante no melhor estilo rockstar. Mas o caminho escolhido é muito mais introspectivo, sutil. Não há como saber se essa foi uma escolha pensada ou um reflexo do estado emocional dos artistas durante a criação da faixa, porém, com certeza soa mais como a segunda opção.
São muitos destaques em um álbum. O menu é diverso, mas tem unidade, e como num bom restaurante, os pratos vem na ordem certa. Contanto, as faixas "épicas" acabam se destacando das outras, inevitavelmente.
"Giorgio by Moroder", a faixa aberta pelo monólogo de Giorgio Moroder contando sobre seu início na música, beira o indescritível. Feita para ser ouvida alto, de preferência em alto-falantes e de noite. São diversas camadas, diversos instrumentos e recursos que entram, saem, vem e vão, em uma organização perfeita.
"Contact" é o encerramento perfeito. A mistura exata entre Daft Punk, opera-rock e viagem interestelar. Essa é, de longe, a música que mais remete aos trabalhos anteriores da dupla, e o estilo orgânico do álbum apenas a engrandece - ainda mais quando ouvida num bom par de fones de ouvido.
"Get Lucky" não está, exatamente, entre as épicas no que concerne à musicalidade. Mas o que ela fez foi, certamente, épico.
Como já foi dito, uma das maneiras de avaliar o potencial de clássico de uma música é sua capacidade de unir as pessoas.
Se você estava vivo nos anos 70, 80, 90, sabe disso melhor que ninguém. Naquela época havia sucessos inescapáveis que alguns amavam, outros nem tanto, e aqueles sucessos inescapáveis que quase ninguém queria escapar. Clássicos que todos ouviam e quase todos curtiam, hits como "Stayin' Alive", "Thriller", "Rumours" ou "Total Eclipse of the Heart". Eles foram ficando escassos com o tempo. Conforme a internet permitiu que os ouvintes estivessem mais segregados em diferentes mídias, aumentou a força necessária a uma canção de atravessar mídias, canais, gêneros e idades e se tornar realmente popular. Não entre os jovens, não entre os adultos, não entre classe X ou Y, entre verdadeiramente, muitos. E "Get Lucky" fez isso.
Com a dose certa de nostalgia, a dose certa de novidade e, honestamente, a dose certa de tudo, "Get Lucky" atinge todos os objetivos que traça, o que a coloca na briga pelo topo das músicas do século.
Finalmente, "Touch".
Talvez, não melhor do que "Get Lucky" ou "Giorgio by Moroder", mas minha favorita do disco. A segunda faixa mais longa do álbum, com 8:19 de duração, é um filme. É visual e narrativa, mas entrega somente o mínimo para que cada um crie sua história a partir do que ouve. O vocal de Paul Williams, que não esconde a idade que tem, só adiciona emoção a uma letra que fala sobre se sentir real, sobre tocar o outro e se sentir presente.
"Touch" pode ser vista como uma viagem em cima da narrativa que o Daft Punk tem sobre os capacetes e etc, mas também pode ser interpretada como muito mais que isso. A canção vai do que parece uma chegada intergaláctica à terra ao momento em que nos descobrimos como seres sensíveis e seres capazes de interagir afetivamente, chegando ao momento em que isso se torna difícil, temos nossos corações partidos e parece que tudo, de repente, cai. Ao mesmo tempo, o quanto essa viagem enorme e espetacular é diferente do que ocorre conosco ao longo da vida, a cada descoberta que, intimamente, temos sobre nós mesmos, como humanos?
A cruzada que "Touch" parece desbravar é cada mãe segurando seu filho pela primeira vez. É cada adolescente que entrelaça os dedos aos de uma paixão platônica, deixando de sentir o resto do corpo inteiro. É todo abraço dado a alguém que amamos quando sabemos que o reencontro será distante, ou incerto.