Beyond | Moonlight

Filmes como esse são raros.

Ano após ano uma infinidade de títulos lançados próximos a temporada de premiações se utilizam de histórias tristes e difíceis para provocar emoções. Na maioria das vezes, são histórias emprestadas de figuras reais, onde tudo é romantizado para parecer que a vida é um conto de fadas e barreiras como o preconceito são apenas um mero obstáculo. Recentemente, principalmente após o famigerado “Oscar so white”, onde a ausência quase por completo de artistas negros na cerimônia foi recebida com intenso criticismo pelo público, o número de produções trazendo minorias tem crescido consideravelmente, mas, ainda assim, a grande maioria reflete jornadas singulares que, de uma forma ou de outra, fugiram a estatística.

Injustamente mais lembrado pela gafe no Oscar do que por seu valor artístico, “Moonlight” é um filme independente, dirigido e escrito por Jenkins em cima da peça de Tarell Alvin McCraney “Under The Moonlight, Black Boys Look Blue”, algo como “sob a luz da lua, garotos negros ficam azuis”. Frase que, apesar de escondida no título oficial, ecoa por toda a obra e que será, de certa forma, o tema desta análise aprofundada do filme a qual começo logo abaixo.

Mas, antes, a parte obrigatória.


Talvez o ponto alto do Oscar nos anos 2010 tenha sido, justamente, aquele infame momento em 2017 quando Jordan Horowitz, produtor de “La La Land”, tomou o microfone para anunciar que o prêmio de Melhor Filme havia sido entregue erroneamente, e “Moonlight” era o verdadeiro vencedor.

A gafe aconteceu por conta do envelope entregue à Warren Beatty, que continha uma duplicata do Oscar de Melhor Atriz, vencido por Emma Stone em La La Land, e que fez o astro olhar de forma confusa para o papel antes de anunciar o filme de Chazelle como o vencedor. Mas não importa, muitos foram culpados, todos arregalaram os olhos, e a vitória de “Moonlight”, apesar de bem vinda e necessária, tinha uma mancha que jamais se apagaria.

O primeiro filme com um elenco inteiramente negro, e também o primeiro com a temática LGBTQ, a ganhar a principal estatueta, agora era delegado como o vencedor daquele ano. Ironicamente, isso diz tanto sobre a nossa sociedade que tudo soa como uma piada de extremo mau gosto, pois, como professaria Jay-Z, até quando as minorias vencem, elas perdem. E apesar de que a postura de toda a equipe de “La La Land” tenha sido louvável no momento (prestem atenção no casal principal no meio de toda a confusão e o sorriso que estampam em seus rostos), é quase impossível não enxergá-los como a parte branca, e vilanesca, de toda essa história.

Mas, apesar de isso, temos de fazer um esforço para nos ater a obra em si, pois se todo o escândalo tende a tornar “Moonlight” inesquecível, é a qualidade do filme que pode, e deve, torná-lo um verdadeiro clássico. Abaixo, faço minha análise.


O termo blue, pejorativo apenas no português (me corrijam) para se falar sobre pessoas negras, pode e constantemente significa, em inglês, estar triste, deprimido, como o gênero musical exemplifica tão bem.

Logo, é por isso que vemos Chiron - jovem o qual acompanhamos na infância, adolescência e fase adulta durante os três atos (e capítulos) deste filme - constantemente cercado desta cor. Seja por objetos no cenário, seja por roupas vestidas por outros personagens, seja pela cinematografia azulada, seja pela água que, por vezes, se junta ao céu em tomadas de tirar o fôlego justamente por representarem, na maioria das vezes, a liberdade e a purificação que este jovem tanto necessita. E se, ao vermos o Mason - que era ligado à cor verde - de “Boyhood” se descobrindo e conquistando etapas da vida já nos sentíamos orgulhosos mesmo com este não tendo passado por uma fração do que Chiron passa em sua vida, é seguro dizer que a experiência de assistir a jornada deste último é algo que ultrapassa as barreiras do cinema.

Porém, diferentemente de “Boyhood”, outra obra prima com temas similares, mas apontando para a trivialidade e leveza de momentos da vida que praticamente todos vivenciam, “Moonlight” não faz questão de nos relacionar com Chiron e sim de nos colocar como espectadores de mais uma história perdida em meio a tantas, jogadas para debaixo do tapete pela imagem do infame Sonho Americano. O que não me impede de apontar o quão semelhantes ambos os meninos são, tanto como crianças como quando adultos. Donos de olhos observadores, ambos aguentam quase quietos as decisões equivocadas de suas mães e se Mason tem mais amigos que Chiron, é apenas por conta de viver em um ambiente muito menos abrasivo do que este sub-mundo de uma Miami que os filmes não mostram sem uma trama fantasiosa por trás. Mas se Mason apenas prefere passar pelas etapas de sua vida observando e respondendo apenas quando interagem com ele, Chiron guarda todas as suas observações para si, as reprimindo na mesma medida que reprime os sentimentos confusos que expressa desde pequeno.

E aqui paro de comparar ambos os personagens - não prometo que não voltarei a fazê-lo futuramente em um texto separado - para retornar aos valores únicos que o filme de Barry Jenkins proporciona.

Além do olhar privilegiado para detalhes e construção de cenas - percebam como uma caneca, ou uma camiseta azul, aparecem em momentos cruciais da narrativa -, Jenkins é bem sucedido, também, na forma como capta as emoções de seus personagens, por vezes fechando a câmera em seus rostos para enfatizar olhares, diálogos e, principalmente, silêncios. A edição, inclusive, tem papel mais do que fundamental em construir a atmosfera conturbada que rodeia a vida de Little (título e forma como o personagem é chamado no primeiro ato), por vezes cortando o movimento da boca de seus personagens e tornando suas falas em algo como pensamentos que escaparam. Um recurso inicialmente estranho, mas profundamente efetivo.

Perceba também como, as vezes, uma cena sem som é mais impactante do que assistir-la, novamente, com o áudio real, pois mesmo que a mãe de Little, Paula (interpretada por Naomie Harris) não verbalizasse seus sentimentos no momento em questão, seria possível entendê-los apenas ao olhar para sua expressão corporal.

Por falar nisso, ela representa, junto ao Juan de Mahershala Ali e ao próprio filho (interpretado por Alex Hibbert no primeiro ato), um dos três lados de um ciclo vicioso de destruição causado pelas drogas na sociedade norte-americana, costurado com perfeição pelo roteiro. Ela, a viciada, não tem mais controle de si própria e, por mais que se importe com seu filho e demonstra isso em uma cena que é, na mesma proporção, linda e difícil de assistir, acaba desempenhando papel principal na personalidade fragilizada que o mesmo desenvolve. E se Juan serve como uma figura paterna extremamente afetuosa e compreensível, a culpa presente em sua alma por ser o provedor de drogas para Paula e, portanto, responsável por parte da vida que Little leva, o despedaça em uma conversa tão franca que torna aquele homem, implacável na execução de seu trabalho, em um ser humano vulnerável que é tão vítima daquela sociedade como causa dela. Little, por sua vez, é a vítima inocente de um ambiente hostil, ou como diria Kendrick Lamar: a criança boa, na cidade má.

E é de suma importância para o desenvolvimento da narrativa, e de Little como personagem, que Juan represente tanto este conceito como apresente o título da peça na forma de uma história que ouvia quando criança. Afinal, se ele é o exemplo perfeito de alguém de bom coração que cedeu a seu meio, é também seu papel de introduzir o azul na vida de Little, de ajudá-lo a encontrar sua identidade. Seu carro é justamente dessa cor e, na excepcional cena onde ensina o menino a nadar - pontuada de forma linda pela trilha sonora -, dá ao mesmo aquilo que representaria liberdade e paz para ele no futuro.

Mas se a construção de simbolismo na misé-en-cene e o jogo de câmeras de Jenkins, auxiliado pelo singular trabalho de edição, são essenciais em emular a confusão no mundo de Little, é a cinematografia de James Laxton, aliada à trilha sonora de Nicholas Britell, que enfatizam as emoções na tela e evidenciam a evolução gradual da narrativa.

No primeiro ato os planos abertos são dotados de um visual quase etéreo que, como dito antes, mistura céu e mar em composições visuais estonteantes além de encontrar beleza no simples - roupas na varanda, adornos de toalhas de mesa, carros e peças de roupa -, já no segundo há um claro crescente no uso do roxo, mostrando como o estado de espírito mais comum de Chiron (título do capítulo e como agora é chamado), o azul, se mistura ao vermelho, representante da violência que experimenta de sua mãe e colegas, e do amor, representante de seu relacionamento com Kevin. Perceba, também, como Jenkins agora abusa de planos onde Chiron está solitário em meio à locações amplas e profundas. Tudo isso, enquanto os acordes de música clássica - acredito que o violino e o celo sejam mais identificáveis - compostos por Britell se transformam em ruídos quase agressivos, que podem ser ouvidos no trailer oficial do longa como a música tema da história.

Nesse ponto da narrativa a presença de Janelle Monáe, uma das artistas mais talentosas de sua geração, se torna como um momento de trégua em uma tempestade que, apesar de pior para Chiron, não deixa de nos afetar. A cantora… não, a atriz interpreta Teresa como uma mulher forte e dona de si, com uma voz que é, ao mesmo tempo, firme e carinhosa, como se toda dor do menino pudesse caber em seus braços.

Já os jovens Jharrel Jerome e Patrick Decile dão vida a mais dois exemplos complexos que, novamente, firmam um trio narrativo com Chiron e representam, em uma sacada sutil e genial do roteiro (e provavelmente do livro), três formas de se lidar com a mesma questão. Afinal, se Chiron é realmente homossexual, e tudo dá a entender que sim, ele responde às incertezas acerca de si próprio se fechando, enquanto Kevin (que veste uma camiseta azul) prefere esconder sua natureza - provavelmente bissexual - ao se gabar das meninas que conquista e Terrel, por sua vez, escolhe o caminho da opressão, por achar que ao agredir Chiron seus próprios impulsos homossexuais serão, também, acoados. Novamente, a narrativa adotada por Kendrick Lamar em seu segundo álbum de estúdio se aplica, pois nenhum dos três jovens - e destaco as interpretações magníficas de todos - têm o espaço para se descobrirem de forma saudável, o que só pode gerar mais violência e ódio.

E perceba como, na conversa onde Terrel pede à Kevin para que bata em Chiron, há, na parede ao fundo, uma porta vermelho vivo.

Mas se pareci rotular as opções sexuais que julgo serem as mais apropriadas para os três, peço desculpas, pois na verdade “Moonlight” é como um prisma - que se relaciona também ao papel da água, amórfica e mutável, na narrativa - não apenas para a sexualidade do homem negro, mas para as relações humanas como um todo, mostrando que não há etimologia que explique o individualismo de cada ser. Ter uma mãe de sangue não o impede de adotar alguém que lhe dê o que você precisa, ainda mais quando criança. Chorar não te torna menos homem, assim como ceder aos caminhos que a vida te leva não, necessariamente, lhe tornam menos bom. E, principalmente, gostar de uma pessoa do mesmo sexo não lhe torna nada se não um ser humano como qualquer outro, vulnerável ao amor e ao carinho que tanto fazem falta na vida de tantas pessoas. Estas mensagens, por mais que claras no filme, nunca se tornam auto-indulgentes. “Moonlight” não te obriga ou manipula a sentir por estas pessoas, mas sim te convida e deixa que seus próprios valores morais falem mais alto.

Construindo dois momentos chaves da narrativa que envolvem, justamente, os três garotos, Jenkins aborda com delicadeza a cena de amor envolvendo Kevin e Chiron que, simbolicamente, envolve os quatro elementos da natureza (como apontado por Pablo Villaça em sua excelente crítica do longa), enquanto transforma a resolução de Chiron com Terrel em um momento de total perda de controle que, por mais que dê um fim aos abusos sofridos pelo primeiro e represente um novo salto em sua personalidade, não se torna sadicamente gratificante, algo que Jenkins consegue evidenciar ao mostrar Terrel agonizando no chão de forma agoniante. Sanders, inclusive, traz todos os anos de abuso em seu olhar, revidando não apenas o que sofreu do Bullie, mas de toda sua vida. Levando em conta o fato de que o jovem ator já havia, momentos antes, se entregado à um choro desesperador, é possível dizer que esta é a interpretação mais aguda do longa, capaz de provocar um emaranhado de emoções conflitantes.

Já a transição para o terceiro ato ocorre de forma mais efetiva que a envolvendo primeiro e segundo, mas ambas podem se mostrar problemáticas para alguns, pois apesar de que os acontecimentos entre os lapsos de tempo sejam explicados de forma fragmentada em diálogos naturais - outro acerto do roteiro -, é difícil não estranhar a ausência completa de Juan e se algo tenho a comentar de “negativo” (e grifo esta palavra de todas as formas possíveis pela plataforma a qual escrevo) seria não ter visto um fim para sua relação com Chiron, mas isso me leva a crer que, assim como todos as outras pessoas a sua volta, no momento que a vida de Chiron é capaz de mudar suas vidas, Jenkins escolhe sabiamente em retirá-las do filme, deixando apenas as pendências que o jovem ainda tem por resolver. Isso explica apenas sua mãe e Kevin aparecendo no terceiro ato, pois suas relações com Juan, Teresa e Terrel já foram finalizadas, de uma forma ou de outra.

E neste terceiro capítulo outras estratégias são utilizadas para refletir o estado de sua vida no momento. Intitulado black, vemos então Black, como agora é chamado, adulto e mais negro, com a infusão do hip-hop - que antes era sútil durante toda a trilha - tomando conta do som de seu carro e de seu visual, além da cinematografia que ressalta a beleza do preto, que agora toma conta das cenas noturnas deixando, momentaneamente, o azul de lado (o belíssimo pôster do filme evidencia bem a rima visual dos três atos). Pois afinal, Black agora consegue escondê-lo (o azul) por trás de músculos, postura e posição como traficante. Quase como um reflexo - e usando a mesma toca - do homem que o resgatara quando criança.

Agora interpretado por Trevante Rhodes com uma linguagem corporal que, apesar de mais segura, serve como uma evolução natural da empregada por Ahston Sanders, Black troca a caminhada desengonçada por uma quase dança, influenciada pelos rappers que ouve no carro. E Rhodes, fisicamente um dos atores mais imponentes em atividade, surpreende pela forma como consegue mascarar suas emoções. Na cena em que retorna à sua mãe, por exemplo, o vemos se despedaçar e reconhecer que, apesar de todo o mal que causara, ela ainda era sua mãe e merecia perdão. Mas esta porção final pertence, principalmente, ao clímax que o longa vinha construindo desde seus trailers com a frase em evidencia: o que você esperava? que Black pergunta à Kevin, agora interpretado por André Holland, quando se reencontram após anos.

Quem é você? Kevin pergunta. Eu sou eu. Black responde. E se essa resposta soa como mais uma defesa, não é. Esta é a única verdade que Black conhece, ele é ele, mesmo sem saber o que ser ele realmente significa.

Aqui Jenkins mostra que é também um mestre em provocar antecipação, construindo as cenas que levam ao final de forma evocativa à romances clássicos, e mostra mais uma vez seu talento para composições visuais ao colocar Kevin em meio à uma parede alaranjada, como se fosse o calor humano que faltava na vida de Black. Preste atenção, os dois se reencontram em uma lanchonete (com vários adornos vermelhos), onde Kevin trabalha como cozinheiro e recebe o suficiente para pagar as contas e cuidar do filho que teve muito cedo - mais uma vez, os aspectos sociais que impedem que aqueles jovens alcem voos maiores - o que o impede de ter um carro, logo Black o oferece uma carona até em casa enquanto Kevin, por sua vez, pergunta onde ele vai passar a noite. E se estas cenas poderiam parecer forçadas ou até artificiais, o mesmo não acontece pela forma como ambos os atores tomam conta de seus textos e dão vida a seus personagens no simples jeito de pronunciar certas palavras. E se não há química como, por exemplo, entre Elio e Oliver (“Me Chame Pelo Seu Nome”) é porque ambos ainda carregam as amarras que os impedem de se libertar, mesmo quando sabem que são donos das próprias vidas.

Nestas cenas a escuridão da noite dá belos contornos ao escuro da pele de seus atores, o que serve de ainda mais contraste quando Kevin fala que vai se trocar e volta com uma camiseta… azul. Jenkins é ainda mais genial ao transpor o exato momento onde se esperava que ambos fossem finalmente consumar seus sentimentos um pelo outro, por um plano ao mesmo tempo demolidor e reconfortante. Little/Chiron/Black só precisava de uma coisa em sua vida, ser amado e compreendido, mesmo sem conseguir expressar com palavras seus sentimentos. É apenas justo que no momento que ele consiga isso da última pessoa que faltava em sua vida (Juan, Teresa e Paula já haviam feito suas pazes com ele, só faltava Kevin), a cena corte para sua imagem quando Little, em frente ao mar e sob a luz da lua. Naquele momento, Little/Chiron/Black estava, finalmente, em sintonia com o mundo a sua volta e, mais importante, consigo mesmo.

Impecável do início ao fim, “Moonlight” é um filme raro, onde nenhuma cena, corte ou plano está fora de lugar. É um trabalho delicado feito com dedicação e compreensão por todos os envolvidos acerca de uma história que, apesar de ficcional, se aplica às vidas de milhares de jovens no mundo inteiro e que lembrou, em um ano - e era - tão crucial para a resistência das minorias mundo afora, que apenas entender e emprestar um pouco de nossos corações pode salvar vidas.

inclusive, as nossas.

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