Beyond | Jay-Z - The Blueprint


Selecionado como o primeiro álbum do século a ser arquivado na Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, decidimos revisitar a obra de Jay-Z que solidificou seu nome entre os maiores nomes da história do hip-hop.


Sempre que Jay-Z fala que está de volta em "The Ruller's Back" - a faixa que abre seu sexto álbum de estúdio - sua voz soa inexplicavelmente alegre. Inexplicável porque, tanto a constatação quanto a alegria não combinam quando olhamos o contexto de “The Blueprint”. Shawn Carter esperava o julgamento de duas acusações contra ele (uma delas, por esfaquear o pouco conhecido produtor Lance Rivera em uma boate por suspeitar que ele estava por trás do esquema de pirataria de seu álbum “Life & and Times…”, de 1999.) e, ao se declarar culpado, foi sentenciado a três anos de liberdade vigiada, sem poder deixar Nova York. Isso já era motivo suficiente para não se estar alegre, fora o fato de que ele nunca esteve “ido” para voltar sendo que, desde 1996, Jay-Z já havia lançado cinco álbuns de estúdio. Mas, ainda assim, essa pequena afirmação se torna a frase essencial desse álbum.

Parafraseando uma obra que tem pouco a ver com tudo o que Jay-Z rima em sua carreira - e a alterando levemente - ele sempre “esteve aqui e de volta outra vez” durante seus primeiros anos como artista. Sua figura se fixou na cena e seu impacto e personalidade eram impossíveis de ser ignorados, mas pela primeira vez, desde sua fenomenal estreia (um dos melhores álbuns dos anos 90, “Reasonable Doubt”), o homem que logo mais se declararia o melhor rapper vivo (em seu “álbum de despedida”, “The Black Album”, 2004) soava realmente como o melhor rapper vivo. O Jay-Z de “The Blueprint” é a evolução lógica do MC quase perfeito de 1996 e ele sabe disso, logo, afirmar que o ruler, ou mandante, está de volta com uma voz que sugere um pequeno sorriso vitorioso no canto da boca é um começo genial.

Pela primeira vez contra a parede desde 1997 (seu sucesso apenas cresceu desde então), parece que ele encontrou o ponto exato entre o stress e calma. Se “Reasonable Doubt” era sua crise de um quarto de vida, não tendo certeza do que viria a seguir, o que vemos aqui é uma “crise” de um quarto de carreira, também não tendo certeza do que viria a seguir. E o tom é comprovadamente confessional, com ele abrindo o álbum com os dizeres:

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What you about to witness is my thoughts
Just my thoughts, man—right or wrong
Just what I was feeling at the time, uhh

E então ele prossegue a faixa - que empresta o nome do segundo álbum de estúdio do rapper britânico Slick Rick - com um primeiro verso que o coloca no centro de toda sociedade a sua volta. Ele se autoproclama a voz dos jovens, constata que é rico e famoso demais para ir para a cadeia e diz representar o assento onde Rosa Parks sentou (uma excelente colocação, por sinal), onde Malcolm X foi baleado e Martin Luther King assassinado. E tudo bem que são sapatos gigantescos para se calçar, pois ele menciona para todos os rappers que - já naquela época - imitavam seu som, que os sapatos dele, Jay-Z, também são. Então, coroando uma das melhores, se não a melhor, abertura de toda sua discografia, ele mesmo chama os trompetes que parecem congratular um a um rei subindo ao trono que cobiçava por tanto tempo.

Bem, independente de o quão confiante e até arrogante esse ato possa soar, a verdade é que, por uma boa parte de “The Blueprint”, Jay-Z estava rimando o melhor álbum de rap de todos os tempos. Um show de talentos na produção - contando com nomes consagrados como Timbaland, Just Blaze, Eminem e um jovem Kanye West - oferece a perfeita pintura de plano de fundo para que o maior - reparem que usei a palavra maior, não melhor, mas isso é assunto para outro artigo - rapper de todos os tempos, em seu auge, pudesse transformar cada faixa em um testamento de sua genialidade.

Genialidade esta que vem principalmente pela forma como Jay-Z rima e não o que ele rima. Os assuntos foram o mesmo pela grande maioria de sua carreira: sua ascensão como rapper, seu passado como traficante, as duras histórias que presenciou, o status que conquistou. Porém foi sua forma de rimar essas histórias tantas vezes, sem nunca parecer estar se repetindo, que o transformaram na lenda que é e, também, o fizeram se tornar o primeiro e único rapper adicionado ao Hall da Fama de Compositores, em 2017.

Ainda em “The Ruller’s Back”, seu flow funciona de forma tão orgânica com a produção que parece que ambos foram concebidos ao mesmo tempo. O vencedor do Grammy, Bink (que fez a batida antes, diga-se de passagem), faz com que todos os elementos funcionem em sinergia, desde uma percussão facilmente distinguível, à uma sessão de cordas que vem e vai, à muito bem colocados ao fundo ad-libs do próprio Jay-Z, abrilhantando a relativamente calma batida e a fundindo à atmosfera sonora, o que faz com que sua chamada pelos trompetes funcione como o bolo da festa que veio na hora certa.

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Vocês sabem aquelas histórias que contam dos grandes atletas? Como Ronald Reagan reverenciou Pelé como um chefe de estado superior a ele próprio na Casa Branca, ou como Michael Jordan tinha uma clausula em seu contrato que dizia que ele podia jogar basquete aonde, quando e com quem quisesse? Há uma semelhante sobre Jay-Z em relação a “The Blueprint”. Reza a lenda que toda a produção fora fechada em uma semana e que, por mais surreal que isso possa parecer, todas as suas rimas foram feitas em dois dias. Mais surreal que isso é examinar seu trabalho vocal e lírico e se permitir acreditar que isso parece, realmente, plausível. Em praticamente todos os momentos deste álbum ele soa extremamente relaxado e tranquilo, quase sem se esforçar, e vários versos parecem ter vindo de freestyles. Há uma grande quantidade de jogos de palavra complexos e de rimas bem elaboradas, mas há algo diferente na estrutura de algumas músicas e em algumas finalizações de bars (utilizarei linhas durante o texto), e Jay-Z parece tão confiante que só posso me permitir acreditar que essa era a intenção.

A segunda faixa, “Takeover”, é crucial para entender essa sensação. Produzida de forma evocativa por Kanye West, é considerada por muitos uma das melhores diss songs da história do Hip-Hop, onde Jay-Z clama estar tomando conta do rap em Nova York, atacando diretamente o duo Mob Deep e seu arqui-rival, Nas. O refrão é simples e direto, a produção faz uma releitura viva de “Five To One” do The Doors, a batida é agressiva, são necessários alguns poucos segundos para se perceber que essa não é uma música amigável. Também é interessante a forma como Kanye adiciona uma voz distorcida gritando as palavras “fame”, “brain” e “lame” (esta última, uma resposta inteligente à tendência de Nas de atacar outros rappers os insultando de forma homofóbica, com Jay-Z respondendo com um insulto considerado infantil, descendo ao nível da competição), ao fim de diversos ataques, sampleando “Fame” de David Bowie.

E a produção casa perfeitamente com a energia da performance. Sua voz é tóxica e irônica, seu flow entra e sai da batida, mostrando claramente a sensação de improviso, mas sem nunca perder o controle e a pose. É incrível como em dois momentos de seu verso apontado a Nas ele reconhece o talento de seu adversário apenas para atacá-lo com força multiplicada logo na próxima linha. Primeiro mencionando o uso de uma frase de “The World Is Yours”, que o próprio Jay-Z usou de sample para o refrão de “Dead Presidents” (1996), ele fala:

So yeah, I sampled your voice, you was usin' it wrong
You made it a hot line, I made it a hot song
And you ain't get a coin, nigga, you was gettin' fucked then

E então, oferecendo uma breve e desrespeitosa análise da discografia de seu conterrâneo:

Four albums in 10 years, nigga? I could divide
That's one every… let's say two, two of them shits was doo
One was "nah," the other was Illmatic
That's a one-hot-album-every-10-year average

Mas além de suceder tanto lirica, como sonoramente, “The Blueprint”, ou sua tradução literal, “A Planta” (daquelas usadas por arquitetos), é o exemplo perfeito de como se construir um álbum de rap. Feito de contrastes menores no início e em grupos conforme avança, nunca se fica muito tempo em volta de uma mesma temática, sonora ou conceitual, o que transforma o ato de ouvir este álbum em uma tarefa tão natural quanto a aparente tranquilidade da voz de Jay-Z.

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Contrastando com o abalo sísmico que é “Takeover”, “Izzo (H.O.V.A.)” é outro exemplo do ecleticismo da dupla que faria “Watch The Throne”, dez anos depois. Feita em cima de elementos da clássica “I Want You Back”, do Jackson 5, a faixa é uma das mais leves e divertidas da carreira de Jay-Z, tanto que se tornou seu primeiro top 10 na Billboard Hot 100. O próprio já comentou como o sample foi essencial para o sucesso do hit, mas em nenhum momento parece que o objetivo era apenas lucrar. Os versos são como um passeio pelo seu passado, desde seu tempo como traficante a sua difícil vida em um projeto domiciliar (que ele menciona diversas vezes em sua discografia), oferecendo um belíssimo contraste com seu flow cheio de vida e a atmosfera da produção. O terceiro verso, definitivamente o melhor, é o exemplo perfeito de sua habilidade de aprofundar um assunto com simplicidade:

I was raised in the projects, roaches and rats
Smokers out back sellin' their mama's sofa

Lookouts on the corner focused on the ave
Ladies in the window, focused on the kinfolk

É impossível não pensar o quão grande essa música poderia ser se Michael Jackson - que a aprovou em meio a um show de Jay-Z - tivesse emprestado seus vocais. (foto ao lado)

Este álbum é também um divisor de águas em sua discografia sendo que, daqui em diante, os momentos em sua carreira onde ele objetifica mulheres em sua música diminuiriam drasticamente, assim como uma tendência geral do Hip-Hop, anos depois. O próprio reconheceu sentir vergonha de alguns de seus versos no passado (“Big Pimpin” o melhor exemplo) e, talvez por isso, “Girls, Girls, Girls” pareça a despedida perfeita (mesmo que não seja de fato a última vez que ele faça isso). Melhor colocando, a faixa é a transição perfeita para seu novo estado na carreira e na vida. Construída em cima de um amaciante sample do cantor de Soul Tom Brock repetindo a frase “My Baby” quase sem parar, Just Blaze entrega uma das melhores produções do disco, adicionando uma elegante sessão de cordas à batida uptempo, que é completamente dominada pelo flow de Jay-Z, em sinergia impecável com a batida do começo ao fim, mesmo que mude o tamanho das linhas e o número de palavras em um intervalo e outro.

Ao mencionar uma variedade de namoradas com uma série de manias estereotipadas - a chinesa que pirateia suas coisas, a imatura que chora até que ele lhe dê dinheiro, a modelo que não cozinha nem limpa, ente outras - ele mantém um tom de ironia e carinho em sua voz que transformam a faixa mais em uma homenagem bem humorada as muitas mulheres de sua vida do que propriamente em algo machista. Como Picasso, que ele se compararia mais para frente em sua carreira, ele pinta sua genialidade em pequenos detalhes, como ao falar a palavra “Merci” ao mencionar uma namorada francesa, a dando duplo sentido soando tanto como “obrigado” como “misericórdia”. É curioso, também, o fato de que o remix da faixa (produzido por West, colocado como bônus), contém vocais não creditados de Michael Jackson, transformando a sequência “Izzo…” e “Girls…” em, indiretamente, um momento de inspiração do Rei do Pop em um dos principais candidatos a Rei do Rap.

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E então, após um primeiro terço musicalmente eclético e sem nunca baixar o alto nível imposto desde a abertura, Jigga (cansei de falar Jay-Z, vou apelar aos apelidos) decide retornar ao som das ruas que o criaram e é aí que, propositalmente,“Jigga That Nigga” entra e a estrutura do álbum, mais uma vez, toma papel central em seu proveito. A faixa, por si só, é uma quebra eficaz da atmosfera leve deixada por ambas suas antecessoras, e figura como a única contribuição do duo Trackmasters (ou Poke & Tone) em todo o disco. Contando com uma musicalidade próxima do funk, assim como em sua trilogia de álbuns “Volume”, “Jigga That Nigga” acaba por ser o momento mais raso do projeto, mas não deixa de ser um lembrete da habilidade de Jigga, o cara (como o contagiante refrão o proclama), em tornar um simples exercício de ostentação em uma bela sequência de palavras, além de, é claro, servir como uma espécie de sacrifício para que o projeto como um todo funcione.

Ele reconhece essa estratégia no próprio álbum, ao pedir, no início de “U Don’t Know”, para que se aumente o som de sua música novamente. Então Just Blaze, que protagonizou com Kanye West uma batalha de pesos pesados sobre quem teria mais faixas no projeto (como esta maravilhosa entrevista da revista norte-americana XXL conta) retorna ao posto com uma impactante alteração de “I’m Not To Blame” de Bobby Byrd, distorcendo e aumentando drasticamente o som dos instrumentos enquanto faz o oposto com a voz grave do cantor, a transformando em um grunhido esganiçado. A faixa quase atinge um nível de poluição sonora, mas inexplicavelmente é um barulho agradável.

Elevado quase a perfeição mais de uma década depois em “4:44”, estava um tema que Jay-Z já trabalhava desde então, o legado dos negros na América. Preocupado em algo além do que o rap em si, seu objetivo sempre foi expandir sua marca a ponto que gerações por vir de sua família estivessem garantidos na boa vida, além de influenciar seus ouvintes a não se preocuparem com estigmas da sociedade na hora de crescer como indivíduo.

Could make 40 off a brick, but one rhyme could beat that
And if somebody woulda told 'em that Hov' would sell clothing
Not in this lifetime, wasn't in my right mind

That's another difference that's between me and them
I smarten up, open the market up

Mas a linha que rouba a música para si é quando ele enfatiza sua habilidade de fazer dinheiro seja qual for a área que esteja trabalhando e, dado seu histórico, não é uma decisão sábia questioná-lo quando diz:

I sell ice in the winter, I sell fire in hell
I am a hustler, baby, I'll sell water to a whale

Outro conceito frequentemente explorado são suas inspirações como artista, melhores evidenciadas na irresistível, clamante, “Hola Hovito”, que serve não bem como um ataque a seus adversários (ele já fez isso anteriormente), mas como um lembrete de que ninguém está no seu nível. Concebida por Timbaland, é a única faixa do projeto sem utilização de nenhum sample, o que faz todo sentido sendo que Jay-Z, apesar de mencionar diversas das figuras que o moldaram como artista e pessoa, faz questão de mostrar que continua sendo original. Ele lembra, por exemplo, que muitos o consideram a terceira escolha de Nova York (atrás de B.I.G. e Nas), assim como Michael Jordan (que ele referencia logo a seguir) fora a terceira escolha de seu Draft em 1984. E Michael Jordan é mencionado novamente na faixa para atestar o fato de que Jay-Z é uma junção dele, Magic Johnson e Larry Bird (outras duas lendas do basquete), pois ninguém tem mais flows que Young (outro apelido seu).

Talvez o que diferencie o impacto de suas linhas quando ele se gaba de suas próprias habilidades seja o quão implícito é em sua voz e flow que ele realmente acredita em tudo que diz e almeja ainda mais alto do que apenas ser o maior rapper da cidade, mencionando outra figura conhecida da selva de concreto:

I'm unstoppable Hov', untoppable flows
I'm the compadre, the Sinatra of my day
Ol' Blue Eyes my nigga, "I did it my way"
If y'all not rollin' with Hov' then hit the highway

Agora, perceba como as últimas três faixas são diretamente ligadas a um som mais cru, menos polido, mais digno de batalhas de rap, enquanto as três a seguir se apoiam profundamente em seus samples de soul (“U Don’t Know”, membro do trio de faixas anterior, tem seu sample tão distorcido que não produz o mesmo efeito das que vem a seguir). E a escolhida para liderar a próxima área da mansão que “The Blueprint” constrói é uma das melhores contribuições de Kanye West ao projeto. A magnífica "Heart of the City (Ain't No Love)" é um exemplo seminal de como se utilizar um sample. Adicionando uma batida no tempo certo à uma remasterização da faixa de mesmo nome (porém invertido) de Bobby Bland, Kanye oferece a Jay-Z um palco acima do prédio mais alto de Nova York (mais a seguir) e Jay-Z toma conta de cada milimetro da produção, coroando o final de cada um de seus versos com a quintessencial pergunta que todo grande artista, um dia, tem de perguntar. Afinal, com o sucesso vem as críticas e ambos crescem de forma simbiótica:

Can I live? I told you in '96 that I came to take this shit
And I did handle my bizI scramble like Randall with his
Cunningham,
 but the only thing runnin' is numbers, fam
Jigga held you down six summers, damn, where's the love?

E então chegamos ao primeiro dos meus dois problemas com este clássico moderno. Com transições naturais entre todas as faixas anteriores, a mudança de “Ain’t No Love…” para “Never Change” incomoda um pouco pela forma como a última começa, enfiando seu sample e batida ao mesmo tempo de uma vez só e já conectando para o refrão. Em um álbum tão paciente, é um pequeno detalhe (fora sentimentos dúbios quanto aos vocais de Kanye no refrão) que atrapalha uma canção, de qualquer modo, excelente. O sample de David Ruffin é bem desconstruído e incorporado à batida climática e a voz de Jay-Z acompanha, aflorando sentimentos de angustia e até mesmo tristeza ao afirmar para todos seus companheiros de infância que ainda é o mesmo e nunca vai mudar.

Em uma de suas mais profundas e tocantes rimas, ele sintetiza como a sociedade influencia crianças a fazerem coisas ruins apenas para poderem se adequar aos padrões impostos e poderem ser, bem, as crianças. E, caso esse verso a seguir lhe lembre um certo conceito abordado no título do segundo álbum de estúdio de Kendrick Lamar, bem, não é mera coincidência:

What, the streets robbed me, wasn't educated properly
Well, fuck y'all, I needed money for Atari
Was so young my big sis' still playin' with Barbie
Young brother, big city, eight million stories

Fazendo uma crescente emocional gradativa, Jay-Z chega ao ápice sentimental do álbum na fenomenal “Song Cry” que, apesar de ter seu início parecido com o de “Never Change”, não há nada que eu possa apontar como sendo fora de lugar em uma das músicas mais pessoais e vulneráveis na carreira de um homem aparentemente tão inabalável. De acordo com Just Blaze esta é, provavelmente, a produção mais complexa do disco, mas também pudera, sendo que o produtor entrega uma ilusão sonora, fazendo a produção, fragmentada e com diversos elementos cortados de seu sample (de Bobby Glenn) parecerem algo fluído por cinco minutos. Mas é a performance de Jay-Z, talvez sua melhor no álbum, que coroa esta faixa como algo tão especial.

Ao mencionar três relacionamentos passados como se fossem um, ele entrega uma das metáforas mais perturbadoramente tristes de toda sua discografia, aumentando ainda mais o peso em sua voz e literalmente se entregando as emoções em seu flow. Nova York, a m.a.a.d city - que foi sutil e gradativamente sendo colocada em cheque nas duas faixas anteriores - fez de Shawn Carter uma pessoa tão machucada que ele precisa fazer sua música chorar, pois considera o ato de derramar lágrimas por amor algo que não condiz com todos os absurdos que teve de viver. Como um homem que atirou no próprio irmão aos onze anos de idade, se tornou traficante na adolescência, viu o pai sair de casa após o assassinato do tio, conviveu por anos sabendo que sua mãe era homossexual e tendo que guardar isso para si, poderia chorar por se relacionar com mulheres que outros rappers tratavam como mais um adereço em suas correntes? É uma letra tocante em todas as suas camadas, desde o que ouvimos, que é ele percebendo como perdeu pessoas importantes em sua vida por não estar pronto para se doar completamente a elas, ao que não está implícito.

Perceba como o primeiro verso são apenas boas memórias, enquanto o segundo começa feliz e termina com ele se perguntando o que deu errado, com o terceiro sendo constatação de que o mal que a cidade o fez, ele fez de volta para a garota que amava e, agora, se lamentará para sempre por ter deixado ela partir:

They say you can't turn a bad girl good
But once a good girl's gone bad, she's gone forever
I'll mourn forever
Shit, I've got to live with the fact I did you wrong forever

Sempre que Jay-Z apresenta “Song Cry” ao vivo é possível perceber que é um momento emotivo, e isso diz mais sobre ele como pessoa do que qualquer frase sobre seu enorme sucesso. É curioso também que logo na próxima faixa, “All I Need”, ele espanta todas essas emoções ao falar sobre seus bens materiais, mesmo que mencione uma linha (tirada de uma música de Tupac) que viraria o refrão de uma de suas primeiras colaborações com Beyoncé:

All I need in this world of sin
Is me and my girlfriend! (ha ha)

E, apesar de a troca de humor ser benéfica e funcional, “All I Need” acaba prejudicada pelo impacto deixado por sua antecessora, mesmo que isso não seja uma coisa ruim para o álbum em si, sendo que a própria é a quebra necessária para o que julgo ser o segundo e último problema do projeto apareça. Universalmente conhecida por ser a música em que Eminem rimou melhor que Jay-Z - o que, por si só, não é um absurdo, afinal Eminem é um dos rappers mais talentosos de todos os tempos e estava em seu auge no início do novo milênio - “Renegade” é um problema única e exclusivamente por, esteticamente, não pertencer à “The Blueprint”. Poderia ter sido, muito bem, um grande destaque em “Marhsall Mathers LP” - a Magnum Opus de Slim Shady - pois apresenta uma textura mais suja, com um baixo melancólico e efeitos sonoros sombrios, com uma batida que invade seus ouvidos, realmente te trazendo para o estado de mente que ambos os rappers se encontram, mas, aqui, fica fora do tom celebrativo e grandioso do resto do álbum.

Mas, como mencionei antes, o que faz dessa faixa uma das mais comentadas em sua carreira por seus críticos é a troca de rimas entre ele e Eminem. Injusta, se você analisar com atenção, pois apesar de Eminem ter sim os melhores versos - e são alguns dos melhores de toda a sua carreira, construídos em cima de um esquema de sílabas metódico e muito bem utilizado - não é como se as muitas metáforas trazidas por Jay-Z pudessem ser simplesmente ignoradas. É engraçado também porque ele direciona suas rimas aos próprios críticos, quase como prevendo a fama negativa que essa música teria em sua carreira:

Just read a magazine that fucked up my day
How you rate music that thugs with nothin' relate to it?

I help them see they way through it—not you
Can't step in my pants, can't walk in my shoes
Bet everything you worth, you'll lose your tie and your shirt

Seguindo a mesma linha, Eminem questiona o fato de ser considerado uma péssima influência para as crianças - e ele era, isso é inegável - da forma debochada como apenas ele sabia fazer, mas é sua abertura em seu segundo verso que merece todas as atenções:

See, I'm a poet to some, a regular modern-day Shakespeare
Jesus Christ, the king of these Latter-day Saints here
To shatter the picture in which of that as they paint me as
A monger of hate, satanist, scatter-brained atheist

A última faixa de “The Blueprint” é gloriosa em toda sua existência. Inteligentemente construída em cima de “Free At Last” - ou enfim livre - de Al Green, “Blueprint (Momma Loves Me) é quase o contrário do álbum que acabamos de ouvir. A atmosfera é leve e minimalista e o único verso é contínuo e sem qualquer forma específica, figurando apenas como um momento de contemplação de um artista que sabe que entregou tudo que podia naquele momento. O acaso esteve do lado de Jay-Z na finalização do projeto, sendo que a pesada “Breathe Easy (Lyrical Exercise)” não pôde ser adicionada a listagem final, pois fora finalizada muito tarde, sendo então adicionada como faixa bônus. E é bom que o álbum termine do jeito que terminou, leve e livre.

Lançado horas antes dos atentados do 11 de Setembro - e me recuso a fazer qualquer paralelo de seu conteúdo com a mudança causada pelos ataques, apesar de que esse paralelo exista - o álbum ainda foi um sucesso e vendeu quase 500 mil cópias apenas em sua primeira semana, tamanha a popularidade de Jay-Z na época. Um tempo depois, Shawn Carter seria condenado e teria de ficar três anos em Nova York em liberdade condicional. Mas, nesse que é talvez seu maior trabalho, ficou bem claro que essa “pena” não passa de uma obrigação contratual. Para Jay-Z, ou Jigga, ou Hova, a cidade mais famosa do mundo não passa de seu playground, o lugar onde cresceu e aprendeu a viver e onde é livre para devolver seus muitos anos de luta em forma de uma arte que tanto aprendemos a amar.

Talvez ele nunca venha a ser considerado o melhor rapper de todos os tempos por conta das circunstâncias envolvendo seus dois principais adversários, Tupac e Notorius B.I.G., tragicamente assassinados ainda tão jovens. Mas “The Blueprint” é um atestado de sua genialidade, um lembrete de que, sempre que mencionarem essa conversa, ele merece estar nela.

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